“Governos em todas as partes do mundo abusaram dos seus poderes em nome da saúde pública, aproveitando a oportunidade para minar a democracia e os direitos humanos.”Michael J. Abramowitz

O fenómeno não é recente, mas o surto sanitário de 2020 pode ter espoletado uma série de iniciativas autoritárias, que colocam em risco o funcionamento do sistema democrático e das liberdades individuais à escala global. Uma tendência que pode acentuar-se durante este ano, sobretudo em regiões onde ainda vigoram regimes pouco estruturados e jovens, mas também no mundo ocidental desenvolvido, que, de acordo com alguns analistas de renome, como Larry Diamond, atravessa um ciclo de recessão democrática.

Acima de tudo, parecem existir sólidas evidências de que, por esse mundo fora, diversos governos estarão a usar o ciclo da pandemia de Covid-19 como argumento para restringir as liberdades individuais, para penalizar projetos de imprensa independente e restringir os direitos das minorias e da separação dos poderes instituídos, elementos fundamentais de um Estado de direito democrático.

A degradação das democracias não é recente, sendo transversal a países desenvolvidos e emergentes

Estudos exaustivos sobre as atitudes dos países em relação à democracia (como, por exemplo, os realizados pelo PEW Research Center, Freedom House, ou Intelligence Unit da “Economist”) têm vindo a evidenciar um fenómeno de profunda deceção popular com o funcionamento da democracia e dos sistemas de representação política, ainda que se mantenha um alargado consenso no que diz respeito a este regime e aos seus princípios basilares.

Neste sentido, e de acordo com o índice de democracia, produzido desde 2006 pelo Intelligence Unit da “Economist”, verifica-se uma deterioração progressiva da prática da democracia nas democracias globais, incluindo as mais desenvolvidas do Ocidente, enquanto revelam também uma tendência para o autoritarismo no mundo em desenvolvimento.

Estas raízes do descontentamento, que têm levado a uma estagnação dos regimes democráticos em países desenvolvidos, como os Estados Unidos, assim como nas nações europeias (não sendo Portugal exceção) – nas quais inclusivamente tem vindo a ser acompanhado pelo ceticismo relativamente ao projeto da União Europeia – têm sido amplamente escrutinadas, e têm vindo a ser particularmente visíveis nos últimos atos eleitorais. De forma algo resumida, dir-se-á que estão muito ligadas, entre outros, aos seguintes fatores:

  • Enfoque na capacidade de decisão das elites governamentais, em vez da criação de mecanismos democráticos de participação popular que permitam maior envolvimento da população;
  • Uma crescente influência decisora de instituições e similares, que não são eleitos e por isso não podem ser responsabilizados;
  • Retirada de decisões de relevo nacional para a esfera de supranacional;
  • Afastamento entre o posicionamento político dos partidos tradicionais e das novas necessidades, e descontentamento estrutural dos eleitorados nacionais;

A erosão do centro político não é recente, acelerou desde 2000 e atingiu níveis estruturais nos últimos cinco anos. No mundo desenvolvido, o descontentamento tem vindo a resultar numa rebelião dos eleitores que tornou o statu quo tradicional insustentável, à medida que aumenta a descrença dos cidadãos nos seus representantes, assim como um ressentimento crescente entre os eleitorados pela falta de representação. Este afastamento tem vindo a dar corpo aos movimentos considerados populistas, ou antissistema, que repudiam os principais partidos políticos e exigem um novo contrato entre o povo e os seus representantes eleitos.

A tendência de “recessão” não é exclusiva das nações desenvolvidas. Muitas das democracias nos países emergentes na Ásia, América Latina ou leste Europeu partilham alguns dos défices que caracterizam a estagnação das democracias mais antigas, com movimentos populares a exigir mudanças na sociedade. Já em regiões de maior pobreza económica e fragilidade das democracias (como na região da África Subsaariana), os protestos por norma expressam aspirações populares por direitos democráticos elementares e liberdades básicas.

Ou seja, independentemente do estado da arte do país (desenvolvido ou outro), o descontentamento com as condições de funcionamento das democracias por todo o mundo é um facto real e que tem vindo a moldar-se há várias décadas. Só que enquanto nos países com economias e democracias mais maduras, este especto parece criar pressão para uma reformulação da agenda dos partidos tradicionais, e para um novo contrato social entre Estado e cidadãos, nos países onde as economias são mais frágeis e os regimes democráticos menos consolidados, existem indícios de que a própria democracia estará lentamente a ser absorvida por regimes autoritários, ou por medidas que limitam e condicionam os valores fundamentais das liberdades individuais e dos direitos humanos.

A Covid-19 espoletou a tentação de suspender princípios democráticos em países mais frágeis

Com o confinamento das populações, e necessidade de intervenção dos governos de maneira a controlar o surto sanitário e a apoiar o tecido económico, a tentação para ultrapassar limites relativos à perpetuação do poder é significativa. De acordo com relatórios de observadores independentes, como o da Freedom House (”Democracy under lockdown) publicado em outubro do ano passado, existem evidências de que a pandemia tem servido de razão para restringir liberdades e direitos humanos em mais de 80 países, o que pode traduzir-se num retrocesso civilizacional nos próximos anos.

A maior parte das situações identificadas neste e noutros relatórios está relacionada com abuso de poder, intimidação para silenciar críticos dos governos políticos em exercício, enfraquecimento das instituições ou, sobretudo, condicionando os sistemas de responsabilização dos países, pilares do desenvolvimento da democracia, nomeadamente:

  1. Ao nível da Transparência, com destaque para a informação oficial disponibilizada relativamente à evolução da pandemia, que o inquérito produzido pela Freedom House mostra que 62% dos inquiridos – um painel de 398 jornalistas, membros da sociedade civil e especialistas – considera pouco fiável. Um dos exemplos citados, a administração norte-americana de Donald Trump, é considerada como uma campanha de desinformação e de politização da saúde pública.
  2. No que diz respeito à Liberdade de imprensa, o mesmo estudo identifica que em 91 países foram impostas novas medidas de controlo sobre os meios de comunicação por causa da pandemia, e que pelo menos em 72 países houve limitações relacionadas com a liberdade de expressão e discurso crítico aos governos em exercício – por exemplo no Sri Lanka, o primeiro-ministro Mahinda Rajapaksa ordenou a prisão de qualquer pessoa que contradiga o governo em termos de Covid-19.
  3. Os atos eleitorais também evidenciaram algumas alterações das regras eleitorais, alegadamente por causa da pandemia, em 18% dos países onde tiveram lugar atos eleitorais em 2019. Novamente aqui o exemplo do Sri Lanka, que permitiu que o seu mandato de legislatura expirasse sem novas eleições, utilizando ainda a minoria muçulmana como bode expiatório.
  4. A brutalidade das forças de segurança contra as populações, que constitui uma situação de abuso de poder, registou agravamentos em cerca de 59 países, aqui se incluindo também o aumento das restrições a grupos étnicos ou minorias religiosas, justificadas com a pandemia. Na Índia, que é considerado país “livre”, a minoria muçulmana tem vindo a ser culpabilizada e marginalizada. Na Roménia, os bairros de maioria romani têm vindo a ser objeto de maiores restrições e controlo policial, enquanto na Sérvia o clima hostil do discurso anti-emigração tem vindo a subir de tom. Já na Turquia, um alto responsável do diretório para os assuntos religiosos responsabilizou a comunidade LGBTI pelo alastramento do vírus.

Os efeitos da degradação das democracias estendem-se para além dos países mais pobres

As conclusões das análises levadas a cabo mostram ainda que as violações das liberdades não se cingiram a governos com menor maturidade democrática, ou países com menor desenvolvimento económico.

Tendo em consideração as classificações de liberdade das nações utilizadas na lista freedom in the world 2020, existem governos, bem como instituições democráticas, em todo o espectro do “Livre” ao “Não Livre” que se envolveram em diversas violações dos direitos humanos em resposta à pandemia do novo coronavírus. Países classificados como “Livres”, nomeadamente Estados Unidos, Índia ou Polónia são identificados como prevaricadores, ao lado dos considerados “Parcialmente Livres”, como Filipinas, Zimbabué e Bolívia, e dos considerados “Não Livres”, incluindo China, Turquia, Rússia e Venezuela.

Da mesma forma que quando olhamos para a dimensão económica, verificamos que a dimensão da riqueza não está correlacionada com a tentação para menor autoritarismo. Países como Estados Unidos e Índia representam um significativo valor da riqueza mundial e são livres, e ao mesmo tempo são também dois dos países considerados como atentatórios das liberdades individuais.

‘Bottoms’ up’: A pandemia enfraqueceu a democracia, mas esta pode ser revitalizada

Em suma, a crise sanitária poderá ter acelerado o enfraquecimento do regime democrático em 80 países em 2020, e certamente acentuou uma tendência estrutural que aponta para o declínio da liberdade global nas últimas décadas, que pode vir a prolongar-se durante o ano em curso, sobretudo enquanto não for concluída a campanha mundial de vacinação em massa. A desigualdade do acesso às vacinas também pode prolongar este efeito, uma vez que os países com menores recursos terão de aceder essencialmente ao programa da OMS, o que irá expô-los mais a esta vaga e ainda a eventuais alterações do vírus, pelo que certos países poderão ter ainda mais tentação para reduzir direitos e liberdades. Contudo, e em particular nos países onde a democracia está mais consolidada, como nos Estados europeus, poderá haver razões para uma refundação do regime democrático.

Os estímulos pós-pandemia apontam no sentido de revolucionar a própria economia e melhorar o enquadramento das famílias em termos de qualidade de vida e das perspetivas futuras – renovando o compromisso social entre instituições e cidadãos. Uma geopolítica internacional potencialmente menos protecionista e inclusiva pós-Trump também pode ajudar a uma maior cooperação intercontinental para o futuro, que inclua maior regulação e reforço das instituições no sentido de evitar futuras falhas de resposta em caso de situações semelhantes. Um mundo mais digital, mais descarbonizado e mais solidário pode ajudar a revitalizar as liberdades e direitos, e voltar a promover os princípios dos regimes democráticos, dos direitos humanos.