Seria tentador dizer que tudo começou com a viagem do primeiro-ministro libanês à Arábia Saudita e o subsequente anúncio da sua demissão (entretanto, talvez em homenagem a Paulo Portas, devidamente revogada), mas no Médio Oriente nada começou há tão pouco tempo. A mais pequena questiúncula, a mais simples disputa, ou o mais ligeiro rancor têm séculos e séculos de vida, e nenhum é assim tão pequeno, simples ou ligeiro. Mas independentemente de qual o seu começo, a verdade é que algo se passa no que em tempos talvez mais iluminados se chamava “o Levante”.

Durante séculos, toda a gente andou por Beirute, e agora parece que toda a gente vive por lá. Gregos, romanos, fenícios, sírios, otomanos e franceses estiveram lá no passado, arménios, xiitas, sunitas, drusos, judeus, cristãos, ortodoxos e refugiados vindos da Palestina ou da Síria fazem parte do Líbano de hoje, com mini-saias e hijabs lado a lado ao descer as ruas, pernas nuas e cabelos cobertos por vezes num só corpo.

Durante quase duas décadas no final do século passado, a guerra civil dividiu todos os que não matou. Mas no fim, diz o libanês Nassim Nicholas Taleb, ajudou a construir um país mais estável, ao resultar num estado descentralizado que facilita a partilha do poder entre os vários grupos étnicos, religiosos e políticos que o compõem: o presidente é invariavelmente cristão, o primeiro-ministro sunita, o Presidente do Parlamento um xiita, e os seus adjuntos ortodoxos.

Em algumas regiões – sul de Beirute, sul do país – o Hezbollah é a autoridade efectiva e aquilo a que mais se assemelha a um Estado. E apesar de tudo o que de mau um sistema destes implica (corrupção, violência, terrorismo), quando comparado com muitos dos seus vizinhos, o Líbano parece um pequeno paraíso. Em grande medida, o problema do Líbano está mesmo nos vizinhos.

Quando o ex-cozinheiro Anthony Bourdain fez um episódio do seu programa Parts Unknown em Beirute, um nativo disse-lhe: “só temos um bom vizinho que nunca se zanga connosco: o mar”. Os restantes trazem sempre chatices, e ao que parece, estão prestes a fazê-lo de novo.

Foi a Arábia Saudita a forçar o primeiro-ministro Hariri a demitir-se, mantendo-o posteriormente sequestrado em Riade, com o objectivo de romper com a política relativamente amigável que Hariri (sunita como os sauditas) mantinha com o Irão xiita e rival regional dos sauditas. O Irão está prestes a atingir o seu velho objectivo de estabelecer um corredor até ao Mediterrâneo, que lhe permitiria, sem obstáculos, transportar armamento para os seus protegidos do Hezbollah, que parecem estar também envolvidos no treino dos rebeldes Houtis do Iémen com quem os sauditas estão em guerra, motivando assim os receios destes últimos.

É compreensível que o novo homem-forte da política saudita, o príncipe Mohammed bin Salman, veja a presença do Irão no resto da região e no Líbano em particular como uma ameaça, e a falta de vontade de Hariri em confrontar o Hezbollah como um perigo. Tal como é compreensível que, do ponto de vista do Irão, ter no Líbano um primeiro-ministro (recorde-se, forçosamente sunita) mais obediente aos desejos sauditas ponha em causa os interesses e a segurança do país; ou que para o Hezbollah um governo libanês hostil ameace a sua sobrevivência; ou que do ponto de vista de Israel um Hezbollah mais e melhor armado seja o suficiente para tirar o sono dos seus cidadãos e pôr a hipótese de atacar antes que seja tarde demais.

Mas a verdade é que qualquer alteração no periclitante equilíbrio político interno libanês que vise acalmar qualquer um destes receios pode ser suficiente para espoletar uma guerra civil, senão mesmo uma guerra em todo o Médio Oriente.

No tal episódio do seu programa, Bourdain chamou ao Libano “um mundo em miniatura”: “Não há qualquer outro lugar sequer remotamente parecido”, que tenha ao mesmo tempo “tudo o que há de extraordinário, e todos os males do mundo”, uma espécie panela de pressão onde se junta e mistura tudo o que há no Médio Oriente. No que diz respeito à comida, o resultado é talvez o que de melhor a região tem para oferecer. Mas quando se trata de política, o cozinhado é bem mais desagradável.