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A persistência do modelo de democracia androcêntrica

Mais uma oportunidade perdida de romper de vez com o modelo de democracia androcêntrica e de se fazer História.
18 Fevereiro 2019, 15h33

As mulheres têm sido discriminadas ao longo da História. Até ao século XX, eram formalmente (na lei) consideradas cidadãs de segunda classe, estando privadas de todos os seus direitos na maior parte dos países e, assim, condenadas a viver uma cidadania parcial. Embora claramente discriminatória, em geral, esta realidade era percebida como relativamente “normal”, sendo bem tolerada e pouco questionada.

Só em meados do século XX, muito devido aos movimentos sociais e feministas, houve uma mudança clara desta perspetiva, nomeadamente por parte das grandes instituições internacionais (como a Organização das Nações Unidas, o Conselho da Europa e a União Europeia) e esta discriminação passou a ser percebida como injusta, um grave problema social que era imperativo combater.

Foi neste contexto de mudança que surgiu, por exemplo, a estratégia gender mainstreaming, que reconhece que os direitos das mulheres são direitos humanos, sendo introduzida a perspetiva integrada de género nas instituições, nas políticas e nas atividades de planeamento e tomada de decisão dos 189 Estados-membros da Organização das Nações Unidas. Tal facto já levou a várias alterações na legislação e à implementação de medidas de ação positiva em mais de uma centena de países de todo o mundo e Portugal é um deles. Na política, medidas como as “quotas voluntárias dos partidos” e a “Lei da Paridade” tornaram-se uma moda, constituindo uma espécie de “via rápida” que permite aumentar mais rapidamente a representação das mulheres neste mundo e acabar com as injustiças do passado.

 

“A percentagem de deputadas no Parlamento só ultrapassou os 10% duas décadas após a instauração da democracia”.

 

No entanto, têm-se registado fortes controvérsias sociais em torno deste tipo de medidas, como é o caso da França, mas também de Portugal, onde o caminho para a igualdade tem sido muito lento. Senão, vejamos.

Após a fundação da democracia no nosso país, a Constituição de 1976 criou as condições políticas e jurídicas para que as mulheres pudessem votar e ser eleitas para todos os cargos políticos sem quaisquer restrições, mas a realidade pouco mudou.

Em 1980, com a ratificação da Convenção sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres (CEDAW, adotada em 1979 pela Assembleia Geral das Nações Unidas), ficou consagrada a possibilidade de implementação de medidas de ação positiva (Art. 4º) no nosso país, mas, uma vez mais, pouco mudou. Para termos uma ideia, a percentagem de deputadas no Parlamento só ultrapassou os 10% duas décadas após a instauração da democracia.

Assim, tornava-se clara, por um lado, a existência de obstáculos informais, frequentemente invisíveis, que continuavam a impedir que as mulheres alcançassem os lugares de poder político e, por outro lado, a certeza de que, sem a implementação de algum tipo e medidas, a situação injusta iria permanecer. Foi neste contexto que, em 1997, a IV Revisão Constitucional abriu a porta à introdução de mecanismos de ação positiva na política portuguesa (Art. 109º).

 

“Estamos no século XXI, mas, aparentemente, as mentalidades de uma parte da elite política continuam impreparadas para a paridade de género”.

 

Poderíamos pensar que estava, finalmente, resolvido o problema do desequilíbrio de género na política, mas mais duas décadas passaram e este continua longe disso. São fortes as resistências à mudança. Três momentos marcantes bastam para as ilustrar, parecendo haver um maior sentimento de injustiça face às medidas entretanto implementadas para promover a igualdade do que aos séculos de discriminação existente face às mulheres.

O primeiro momento ocorreu em 1998/99, quando, pela primeira vez em Portugal, foi proposto pelo PS que se adotasse o sistema de quotas (Proposta de Lei n.º 194/VII) para promover uma maior igualdade entre homens e mulheres nas listas eleitorais. A Proposta de Lei não foi aprovada. Aparentemente, as mentalidades ainda não estariam preparadas para dar esse passo. Havia um consenso claro quanto à existência do problema das desigualdades de género na política, mas não quanto à solução a adotar para o resolver, sendo certa a relevância do “mérito” – o das mulheres, é claro, porque o dos homens nunca foi questionado.

O segundo momento culminou, em 2006, com a promulgação da Lei da Paridade (Lei Orgânica Nº3/2006). Embora seja assim designada, esta lei ficou-se pelos 33,3%, resultando de várias propostas do PS e do BE e de mais sete anos de negociações, o que é bastante ilustrativo das fortes resistências à mudança do sistema. A análise do ciclo eleitoral de 2009 confirmou a existência destas resistências, particularmente visíveis ao nível do poder local.

O terceiro momento ocorreu ao longo deste último ano, com a Proposta de Lei Nº117/XIII apresentada pelo Governo no início de 2018 (na sequência de um estudo que mostrava que, embora a Lei da Paridade tenha sido implementada com particular sucesso ao nível das eleições para o Parlamento Europeu, apresentava limitações ao nível legislativo e local) e a aprovação de uma lei possível, no dia 8 de fevereiro de 2019, após mais um ano de negociações. Estamos no século XXI, mas, aparentemente, as mentalidades de uma parte da elite política continuam impreparadas para a paridade de género.

Noutro artigo já tínhamos salientado a relevância da Proposta de Lei Nº117/XIII que, embora não sendo a ideal, era sem dúvida fundamental para que fosse dado mais um passo no sentido da melhoria da qualidade da democracia e dos direitos humanos das mulheres, sobretudo por definir o limiar da paridade como 40% e, cumulativamente, propor a aplicação da regra de 50% para os dois primeiros lugares das listas. Porém, não houve consenso para a sua aprovação no Parlamento e esta última regra caiu, fazendo prever mais uma estagnação. Perdeu-se, portanto, mais uma oportunidade de romper com o modelo de democracia androcêntrica e de se fazer História.

 

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