Pode parecer fútil ou até mesmo inconveniente falar de política nos tempos difíceis que vivemos. A ansiedade do confinamento, o temor do contágio, a incerteza quanto à crise económica que se prevê grave ou o sofrimento das famílias que perderam entes queridos, perecidos neste combate que nos apanhou desarmados contra um inimigo insidioso, privadas até de uma derradeira despedida e dos rituais do luto, geraram um ambiente disruptivo que nos distraiu das demais questões relevantes para o futuro colectivo.

Porém, a política não pára, mesmo em circunstâncias excepcionais – e ainda bem que assim é, pois a preservação da democracia, importante sempre, se torna ainda mais relevante em momentos de crise – e o país não pode esquecer que será chamado a eleger o Presidente da República no início do próximo ano.

A campanha para as presidenciais não decorrerá seguramente na forma habitual, não sendo sequer certo que as eleições se possam realizar na data prevista, pois a incerteza é a única certeza de que neste momento dispomos. Mas, apesar das contingências, o processo democrático prossegue e, previsto o sufrágio para daqui a alguns meses, os partidos têm que definir estratégias e tornar pública a sua posição.

Consciente disso, Augusto Santos Silva lançou o mote, inteligentemente apostando na antecipação aos partidos da direita, ao afirmar que a articulação entre o chefe de Estado e o primeiro-ministro na gestão da presente crise correu “optimamente bem” e que tal relação harmoniosa deverá ser tida em conta na posição do PS na eleição que se avizinha.

Desta forma, os socialistas fazem da dificuldade uma oportunidade, dissuadindo os possíveis candidatos da sua área política de avançarem, pois não é de todo conveniente ao PS associar-se a um candidato que sabe de antemão perdedor. Por outro lado, o apoio socialista a um opositor a Marcelo Rebelo de Sousa seria encarado negativamente pelos cidadãos, que o interpretariam como um factor de divisão e de conflito com o Presidente da República num momento de emergência nacional, que recomenda unidade, o que reverteria em seu desfavor.

Mais complexa será a posição da direita. Marcelo Rebelo de Sousa é, à partida, o seu candidato natural, com a vantagem de se tratar de um candidato vencedor. Porém, o Presidente da República não quererá, tal como sucedeu na sua primeira eleição, ficar associado à sua área política de origem, porque sabe que esta lhe diminui a margem de manobra e forçaria o PS a mudar a já previsível estratégia que Santos Silva subtilmente confirmou.

Além do mais, faria recair sobre si o ónus do confronto, que os socialistas, como referido, pretendem evitar e Marcelo Rebelo de Sousa, seguramente, também. Assim, a direita não poderá beneficiar da sua vitória, de cujos créditos exclusivos este, aliás, não se pretenderá privar.

Por seu turno, tem sido à direita que as vozes críticas a Marcelo têm soado mais alto. O Presidente desiludiu-a, pois não foi o opositor ao Governo mais à esquerda que o país conheceu desde o período revolucionário. Contrariamente a Cavaco Silva, que não escondeu o seu desagrado com o acordo parlamentar dos partidos de esquerda que sustentou o primeiro governo de António Costa, Marcelo escolheu a via da cooperação institucional, que propiciou ao país um ambiente político pacífico, particularmente conveniente no contexto de recuperação da crise económica e financeira que então se iniciava.

As críticas da direita não se limitaram ao conteúdo do mandato presidencial, mas também à sua forma. A conduta empática e afectuosa do Presidente – reveladora da fina intuição política de Marcelo que percebeu o que os portugueses esperam do chefe de Estado – mereceu também pedantes reparos de vários elementos da direita.

As eleições presidenciais não lhe serão, portanto, fáceis. Com um PS disposto a um pacto de não agressão com Marcelo, não deixará de o apoiar também, associando-se a uma candidatura que tomará foros de candidatura de unidade nacional, mas da qual escasso fruto colherá. Marcelo será para muitos na direita o sapo que os comunistas engoliram em 1986.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.