Marcelo Rebelo de Sousa reconciliou os portugueses com a Presidência da República, rompendo com o estilo austero de Cavaco. Distribuiu afectos e marcou presença nos momentos chave da vida nacional dos últimos anos. O seu estilo simpático e desempoeirado rapidamente o fez cair no goto do povo, que não estava habituado a ver o Presidente da República a telefonar em direto para um talk show da manhã e a fazer outras coisas que, se fossem praticadas por outro político que não estivesse nas boas graças dos media, seriam imediatamente rotuladas de gestos populistas.
Ninguém questiona a integridade e as boas intenções de Marcelo, o seu respeito pelas instituições democráticas e o seu patriotismo. Porém, o que o Presidente tem feito é uma forma de populismo que, embora seja “benigno” quando comparado com outros, terá consequências para a qualidade da nossa democracia. O populismo, ainda que em versão soft, enfraquece as instituições. E estas são o factor que realmente faz a diferença no que toca à governação e ao desenvolvimento dos países.
Em Marcelo, vemos o clássico sintoma populista de uma preocupação excessiva em criar um vínculo emocional e uma ligação direta às massas, que torne desnecessária a intermediação dos partidos políticos e de outras instituições. Foi o facto de ter construído essa relação com os portugueses, ao longo de 20 anos de homilias televisivas, que lhe permitiu ser eleito sem fazer campanha nos moldes tradicionais e quase sem precisar do apoio do seu partido. E é também isto que explica a ânsia, quase caricatural, de aparecer em todos os assuntos que lhe permitam fazer boa figura, mesmo que os bombeiros e a GNR possam dar conta da ocorrência.
Por outro lado, vemos o político cata-vento, que diz o que queremos ouvir e ambiciona um pouco saudável estatuto de figura incontestada e universalmente adorada, evitando comprometer-se em assuntos difíceis. A forma como lida com o eleitorado católico, entre outros grupos que manobra de forma hábil (como a corporação dos jornalistas), é um bom exemplo desta sua fixação com a popularidade: o Presidente aproveita todos os momentos para namorar os católicos, com frequentes demonstrações de devoção. Mas quando questionado sobre o que fará quando lhe colocarem à frente a legalização da eutanásia, eis que surge o cata-vento.
“O problema é saber exatamente o que se defende, o que se pensa, aquilo em que se acredita, depois deixo fluir os acontecimentos”, disse Marcelo em novembro, citado pela “Renascença”. Depois desta resposta, tanto os defensores como os opositores da eutanásia ficaram sem saber o que vai afinal fazer o Presidente, mas o voto católico, devidamente consolado com alusões à “Providência”, permanecerá fiel.
Com a sua forma de fazer política, Marcelo aproximou os cidadãos da Presidência, mas ao mesmo tempo lançou bem fundo as sementes do populismo em Portugal. As consequências deste facto só serão completamente entendidas dentro de algumas décadas, mas os efeitos já começam a fazer-se sentir, como se viu na recente entrevista de Cristina Ferreira à ”Visão”. A apresentadora admite que não se sente tecnicamente preparada para estar num Governo, mas, inspirando-se no estilo de Marcelo, admite candidatar-se a Presidente da República. Cristina Ferreira é uma profissional de mérito reconhecido, mas o que concluímos desta entrevista é que a atuação de Marcelo está a baixar a fasquia em termos de competências políticas (e técnicas) tidas como necessárias para assumir a mais alta magistratura da Nação.
Depois do atual inquilino de Belém, qualquer celebridade com o dom de seduzir as massas poderá legitimamente aspirar à Presidência. A porta que Marcelo abriu não voltará a fechar-se e ninguém sabe o que daí virá.