O Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 23 de setembro de 2025 assume especial relevância na consolidação dos critérios de responsabilidade civil extracontratual em acidentes de viação ocorridos em autoestrada, marcadamente quando existem obstáculos visíveis a grande distância e se discute a moderação da velocidade em função das circunstâncias. O caso apreciado resultou na morte de um condutor que, após despiste e imobilização do seu veículo na faixa da esquerda, foi atropelado por outro automóvel que circulava na mesma via, em condições de boa visibilidade, piso seco e trânsito reduzido.

Os factos provados indicam que o veículo sinistrado ficou imobilizado com as luzes ligadas e era visível a cerca de 300 metros. Pouco tempo depois, o condutor, já fora do automóvel, foi colhido por um segundo veículo, que circulava, pelo menos, a 97 km/h, acabando projetado dezenas de metros, vindo a falecer no local. A ação indemnizatória foi instaurada pelas filhas menores da vítima contra a seguradora do veículo interveniente. Em primeira instância, a seguradora foi absolvida com fundamento na inexistência de violação juridicamente relevante de regras estradais e na ausência de prova de que o condutor pudesse evitar o atropelamento.

Em revista, o Supremo recentrou a análise nos pressupostos cumulativos da responsabilidade civil: facto voluntário, ilicitude, culpa, dano e nexo de causalidade. Considerou decisiva a visibilidade do obstáculo a 300 metros para reconduzir a conduta do condutor que atropelou a vítima ao dever de moderação da velocidade previsto no artigo 24.º, n.º 1, do Código da Estrada. Nestas circunstâncias, incumbia-lhe reduzir a velocidade a valores compatíveis com a paragem em segurança, tanto mais que não circulavam veículos na via contígua e nada obstava a uma manobra evasiva ou à desaceleração atempada.

O Tribunal reafirma a orientação jurisprudencial segundo a qual a inobservância de regras de trânsito faz presumir a culpa, dispensando prova específica da falta de diligência, sem prejuízo de prova em contrário pelo lesante. A omissão de redução de velocidade, face a obstáculo visível a longa distância, afasta-se do padrão do condutor medianamente prudente e fundamenta um juízo de censura por negligência. No plano causal, o Supremo conclui que a velocidade a que seguia o veículo foi causa adequada do atropelamento, salientando que, circular à velocidade máxima legal ou inferior, com travagem iniciada a tempo, teria permitido imobilizar a viatura num espaço significativamente inferior aos 300 metros de visibilidade assinalados.

Importa ainda a qualificação da vítima: não como peão em sentido estrito, mas como utente da via que, em consequência de acidente prévio, se encontrava momentaneamente fora do veículo. Tal qualificação afasta leituras restritivas do âmbito de proteção das normas de circulação em autoestrada e impede que a proibição genérica de circulação de peões exclua a tutela conferida pelas regras de moderação da velocidade.

Em consequência, o Supremo julgou parcialmente procedente a revista, revogando a decisão quanto à verificação da ilicitude, culpa e nexo de causalidade, e determinou a baixa dos autos para apreciação dos restantes requisitos, designadamente a quantificação dos danos e a eventual redução da indemnização ao abrigo do artigo 570.º do Código Civil, caso se verifique conduta concausal do lesado.

O acórdão reforça, assim, a matriz de facilitação probatória da culpa em sinistros rodoviários graves, mediante presunções judiciais simples, e clarifica que a visibilidade de um obstáculo em autoestrada faz emergir um dever reforçado de redução da velocidade, cuja violação desencadeia responsabilidade, tanto no plano objetivo da ilicitude como no subjetivo da culpa. Pela sua sistematização rigorosa e articulação entre deveres estradais, presunções de culpa e nexo de causalidade adequado, o aresto constitui referência para a prática forense e para a uniformização de critérios decisórios em acidentes de viação em autoestrada.