A Administração Trump listou largas dezenas de palavras que considera “woke” e que, por isso, quer proibir nos documentos governamentais. Percorrer essa lista numa edição do “New York Times” é o mesmo que ter um arrepio orwelliano.
Transcritas a vermelho lá estão todas as palavras que orbitam em torno das ideias de inclusão, discriminação, diversidade, igualdade, género, opressão, preconceito, anti-racismo, viés, multicultural, minoria. Também palavras de espectro semântico tão amplo como “político”, “historicamente”, “sistematicamente”. Ou palavras sobre ordens de factos que precisam de ser pensados e gerar acção como “poluição”, “crise climática”. Ou ainda palavras sobre estratégias de conhecimento e acção baseada nele, para enfrentar esses factos, como, por exemplo, “ciência climática” ou “energia limpa”. Tudo isto está a ser limpo dos organismos oficiais da administração norte-americana.
A vastidão da lista e do alcance das palavras proibidas por Trump não pode deixar de ser interpretada como uma tentativa de manipular o modo por que se expressa o pensamento do mundo em que vivemos e, antes mesmo dessa expressão, a própria possibilidade de o formar. Nesse sentido, é radicalmente negacionista. Não nega um aspecto da realidade, mas a própria possibilidade de a pensar. E, consequentemente, de a transformar.
Não há no trumpismo, apesar dos seus aliados tecnológicos, outra perspectiva além da reposição de uma lógica de legitimação baseada no poder, qualquer que seja. Ironicamente, a tecnologia que os utopistas porventura ligariam a uma potência de transformação é, nesta lógica, apenas um território de medida de poder. Além da expressão do poder, do reconhecimento cristalino de quem são os poderosos e dos seus direitos (o que o neoimperialismo de Trump ilustra), bloqueia-se na linguagem qualquer devaneio de transformação ou contrapoder.
Não transformar o mundo, não pensar o mundo, impedir ambas, é, contudo, apenas o corolário do que está ainda mais profundamente em causa: um projecto de dominação dos próprios modos por que se pensa, um projecto que é, necessariamente, também de dominação dos cidadãos sujeitos desse pensar.
Pensamos com recurso a palavras porque são elas que fixam noções, ideias, por vezes conceptualmente definidas, por vezes apenas significadas implicitamente. Proibir as palavras por que um pensamento se exprime não é, por isso, apenas calá-lo, num exercício de censura que põe em causa a liberdade de expressão consagrada na primeira emenda da Constituição dos EUA. É isso, mas também, e fundamentalmente, a tentativa de bloquear a forma por que um pensamento é pensado, se desdobra em raciocínios e alcança conclusões. O desígnio inerente à purga linguística trumpista é impedir que o pensamento chegue a ser aquilo que desejava que fosse calado mas, assim, nem sequer tem de ser calado.
Quando nos tiram da boca as palavras com que poderíamos dizer o que pensamos, a própria possibilidade do protesto fica ameaçada. Num certo sentido, é essa a diferença entre repressão e opressão. A repressão impede a passagem, a opressão elimina-a. Quando a opressão se instala, como um dispositivo de vigilância e punição, nas próprias palavras por que se pensa estamos em pleno campo totalitário, o estado a entrar-nos na cabeça, a forçar-nos o que pensamos e sentimos.
Este era bem o desígnio da “newspeak”, a novilíngua do “1984” de George Orwell. Aliás, as comparações entre Trump e a distopia não são deste seu segundo mandato. Em 2017, a “New Yorker” já trazia este título – Orwell’s “1984” and Trump’s America. E em 2019, em “The Nation”, lia-se este outro – Trump’s America Is Worse Than Orwell’s ‘1984’. Agora, só se confirma o que era perfeitamente esperado, ainda que tremendamente inusitado. Como se uma vertigem capturasse o espírito da história nestes tempos cada vez mais sombrios. Vemos Trump a arrastar os EUA e o mundo inteiro para uma condição sob a influência de um estado de vertigem, que teria de ser vencida, mas, pelo contrário, é vivida como uma força inexorável.
A comparação faz sentido porque, tal como na vertigem, há qualquer coisa de ilusão que urge ser desmascarado. É preciso dar um passo atrás, reencontrar o centro gravítico dos nossos corpos sociais, sair do precipício e olhar de novo para o chão que nos pede atenção.
Esta purga linguística traz dentro uma vontade de exemplaridade, que leve a mesma prática a todo o lado, excluindo as palavras doravante malditas do léxico e do pensamento das pessoas que articulam a opinião pública, desde a televisão à imprensa. Nem sequer é motivada, no fundamental, por alguma reacção epidérmica ao politicamente correcto. Esse é um alibi artificiosamente construído (aliás, abundantemente nutrido também por cá, nesta nossa esfera pública por vezes tão seguidista).
Um bom exemplo que denuncia que não é esse o caso revela-se no facto de, entre as palavras proibidas de Trump, se encontrar o nome “Golfo do México”, com isso não pretendendo senão impor uma toponímia neoimperialista. Mais básica, ou absolutamente, a denúncia tem de ser a de que esta purga exprime um desígnio de dominação pela opressão das palavras com que formamos e exprimimos pensamento sobre o mundo. É totalitarismo. E é inimiga de qualquer entendimento de um mundo livre.
O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.