O doloroso espetáculo ocorrido no Parlamento na passada semana constitui um episódio na saga dos que se julgam acima da lei e da justiça. Todos se sentem incomodados perante o desempenho despudorado de quem desrespeitou direito e justiça, pessoas e instituições, como se todos fossem incautos.

Obviamente que o comportamento fica com quem o pratica. Mas, perante a opinião pública e transmitido em direto, fica um triste exemplo de quem, agraciado com comenda no reconhecimento de atos relevantes para o país, deveria demonstrar acrescido respeito de quem o acolheu como empreendedor e deu guarida e notoriedade a uma coleção de arte com nome e onde negócio e arte deram as mãos para deliciar muitos. Boas ações no passado não enquadram comportamentos no futuro…

Ninguém fica indiferente a este episódio, embora o desempenho não tenha um registo muito distinto do habitual e não se esperasse tanto atrevimento. Esta situação só se tornou mais evidente porque ocorreu numa comissão de inquérito parlamentar com poderes judiciais. A este cenário quase dantesco importa lembrar o ensaio de viagem da coleção até Londres, que saindo do país nunca mais encontraria o caminho de volta. Felizmente que tal foi impedido.

Estamos perante alguém que sempre negociou com o Estado – e vários governos – com o propósito de obter ganho de notoriedade e salvaguarda de valor. Claro que o resultado final tem sido de interesse mútuo com a exposição de uma coleção relevante que, de outra forma, provavelmente não seria visível. Já nos processos de negociação ou renegociação da exposição da coleção, os comportamentos extravagantes assumiam-se como uma imagem de marca do protagonista que compensava a polémica em face do interesse público.

Ninguém nega o valor cultural da coleção que marca a existência de um edifício emblemático da cidade de Lisboa e do país, como é o CCB. Mas demonstra-se ultrajante alguém assumir estratagemas jurídicos e legais para subtrair a coleção à dimensão de património pessoal, evitando constituir garantia acessória legal, mas seguramente que aparentava ser detentor de meios para responder aos financiamentos que usando o seu nome pediu a instituições públicas. O nome substituiu a prudência e a imagem ultrapassou a cautela.

Finalmente os bancos reagiram em conjunto, buscando obter mais do que uma garagem como reparação para os milhões perdidos. Os deputados, irritados pelo tamanho desaforo em direto e sem filtros, agem e pedem ação decisiva do Ministério Público. Mas, salvo melhor opinião, sem grande sucesso.

O Governo, mesmo face à declaração inflamada de um primeiro-ministro chocado, deveria ter estas declarações bem presentes para memória futura. A esquerda, sempre pronta para levantar dedo a bancos e banqueiros, não se mostra incomodada e irritada a reclamar intervenção pública decisiva e imediata. Exigir prender banqueiros é mais popular. Mas ao Governo exige-se mais. Num momento próximo se irão abrir novos enredos e iniciar novas negociações. Salvaguardar o espólio de um espaço que se construiu sobre a dimensão de uma coleção e que com ela se confunde.

Perante esta vontade de subtrair a coleção ao escrutínio pessoal, colocando-a numa dimensão associativa, o Governo deveria ponderar promover a expropriação da mesma por utilidade pública. E daqui a “justa indemnização” compensaria parcialmente créditos reclamados. Claro que não se trata de uma coleção em nome próprio que já não existe. Mas antes ponderar a expropriação da “coleção da Associação” sucedânea das obras de arte tão queridas de todos. Dos bancos, do Estado, do público e, claro, dos membros da associação.