As eleições europeias elegem muitas centenas de eurodeputados, mas que pouco pesam no que se decide à escala europeia, particularmente no que tem impacto sobre a vida dos cidadãos.

Há já bastantes anos Colin Crouch avançou com o conceito de “pós-democracia”, para dizer que as nossas democracias tornaram-se espectáculo de entretenimento inócuo, dessa forma assegurando que a decisão que não é inconsequente seja tomada nos bastidores e sem grande sobressalto. Mas, no caso da União Europeia (UE) o que temos é mais uma “para-democracia”. Elege-se um órgão, quando, realmente, substancialmente, decide-se no órgão ao lado, aquele que não é eleito, e executa-se ainda noutro, também não eleito, respectivamente Conselho da União Europeia (e cimeiras do Conselho Europeu) e Comissão Europeia.

Estes não serem eleitos, serem órgãos em que têm assento ministros dos Estados-membros, chefes de Estado/Governo e comissários indicados por aqueles é um boicote que a UE se promove sobre si própria. Porque o poder que decide na UE não é nunca o poder constituído por uma genuína democracia europeia, mas o poder intergovernamental composto pelos diferentes Estados-membros da União, com as legitimidades próprias dos seus interesses particulares e não a do interesse comum europeu.

Este boicote tem outras dimensões. Sendo a UE um projecto de comunidade económica, social e política com mais de meio século, nada justifica que ainda não haja um espaço público europeu digno desse nome. Talvez até seja menos difícil explicar o desinteresse em implementar políticas comuns eficazes nesse sentido denunciando a agenda interessada em não se sair de uma lógica intergovernamental de poder europeu, a que convém não um, mas muitos e pouco ligados espaços públicos.

Só que essa agenda impede a formação política de vontades comuns que se esperaria de uma democracia genuinamente europeia. Pior: esconde a alienação de soberania para os “pares” intergovernamentais com maior peso económico e, por maioria de razão, maior peso político também.

Não haver espaço público europeu é desolador. Um exemplo só: muito provavelmente, a esmagadora maioria dos cidadãos eleitores nunca ouvira falar dos seis candidatos à presidência da Comissão Europeia antes de ter tido lugar o debate entre eles há uma semana. E provavelmente oito dias depois será ainda uma esmagadora maioria que terá esquecido os seus nomes. Não por ignorância ou negligência cidadã, mas porque não houve experiência comum de espaço público.

Se não houvesse esta má-fé política em torno do que é a democracia europeia e já se teria, há décadas, levado a sério a necessidade de um espaço público europeu, com afectação de fundos capazes de o promover. Porque sem espaço público não há realmente democracia, como tantas vezes notou o seu principal teórico: Jürgen Habermas.  Porque sem espaço público sobra antagonismo que encontra sempre outras formas de expressar, até à violência.

Num tempo de comunicação digital é simplesmente absurdo a persistência desta incapacidade. Aliás, se abrirmos os sites do “Guardian”, do “Spiegel”, do “El País” encontramos em todos eles edições internacionais, e também edições dirigidas para algumas grandes regiões do globo, para a América do Sul, e do Norte, para a Austrália, para o Brasil. Mas nenhum destes expoentes da imprensa europeia tem uma edição especificamente europeia. Como nenhum deles destaca especialmente o debate entre os seis candidatos à presidência da Comissão. Por cá ouviu-se um pouco mais sobre o debate apenas pela curiosidade de Portugal ter vindo à baila numa troca de argumentos entre dois dos protagonistas do debate.

Fazer uma comunidade a partir de comunidades linguística e culturalmente heterogéneas não é fácil. Muito pior é se os poderes governamentais que, na verdade, são o poder político na Europa relativizam e subvalorizam essa meta, desde logo fazendo das eleições europeias referendos à governação local ou ensaios gerais das legislativas subsequentes.

Que fazer então? Que programa seria necessário encontrar nas eleições europeias deste Domingo? Para estas eleições, era preciso debater menos o que respeita a legislativas, mas era preciso também que a alternativa não fosse apenas a discussão entre ficar e sair da Europa. Assim, é como se ficássemos presos no grau zero do debate europeu, sem nele chegar a entrar verdadeiramente.

Ironicamente, diverge-se cada vez mais sobre dizer sim ou não à Europa, mas diverge-se cada vez menos, e com tão poucas consequências, sobre que política e que sentido se quer para a Europa. Sair ou ficar no euro, sair ou ficar em Schengen, sair ou ficar da União… se é possível ou não, o desafio lógico das saídas ordenadas, as suas variantes técnicas, a negociação do Brexit, e outras variantes, nada mais, nada se pensa, apenas silêncio. Já era tempo do eurocepticismo fazer a sua autocrítica, sem prejuízo da sua consciência crítica.

A União Europeia, depois da CEE e da Comunidade Europeia do Carvão e do Aço, foi uma construção singular que teve por base histórica a necessidade de reorganizar um espaço comum a partir dos escombros de uma guerra mundial e frente a uma cortina de ferro poderosa. Essa ordem geoestratégica está hoje ultrapassada, com a crescente centralidade global do pólo económico e demográfico constituído pela China e grosso modo a Ásia Oriental a partir da Índia.

Por isso, num tempo em que o privilégio do conhecimento tecnológico se dilui, já não garantindo à Europa a posição de vantagem do passado, e em que a ordem geoestratégica global se alterou drasticamente,  ou o projecto europeu se ressignifica ou torna-se anacrónico, uma sobrevivência em progressivo estertor, na forma de medo de perda de privilégios, enquanto espera pelo fim. A obsessão austeritária dirigida aos países do Sul da UE e a recusa em incorporar a nova realidade migratória (com as alterações climáticas a trazerem de forma perene o que as guerras colocavam na forma de crise episódica) devem ser compreendidas sobretudo como sintomas desse medo calado, onde medram integrismos e a chantagem de que a União é insustentável se não for uma união de músculo, para os de dentro e para os de fora.

Para que não seja esse o desfecho, a UE precisa de inverter duas tendências.

1. Uma Europa para-democrática não serve. É preciso tornar possíveis vontades comuns na UE, que possam fazer-se ouvir e conduzir o seu destino comum através de representantes eleitos. Para isso é preciso espaço público europeu, levado tão a sério como uma política agrícola comum ou a moeda única. E é preciso que, das duas uma, ou o Parlamento Europeu decida mais ou quem decida passe a ser eleito pelos cidadãos europeus. E falta vencer a iliteracia sobre as instituições e os processos da UE, mas em dois sentidos – por um lado, deve tornar-se componente obrigatória da educação pública civil, aliás como também as instituições políticas nacionais e a Constituição; por outro, deve desburocratizar-se e “destecnificar” a linguagem política da UE, que apenas tem servido para a tornar adversa à politização e para fazer da governação técnica um lugar sem questões nem respostas políticas. A componente política dos tratados, que deve importar a todos os cidadãos, deve ser enxuta e sem alçapões. Por exemplo, o Tratado do Eliseu que pôs a amizade entre França e a Alemanha “nos eixos” não tinha mais de meia dúzia de páginas. Condescendência com o eurocratês e a iliteracia são outras tantas dimensões cúmplices do autoboicote intergovernamental à consciência pública europeia.

2. Faz-se uma comunidade fazendo nascer um sujeito de vontades comuns, mas também com o reconhecimento das necessidades e aspirações comuns, objecto dessa comunidade.  E também aqui um boicote é patente.  Uma Europa que se justifica apenas pela conservação da paz, antídoto contra a guerra, por importante que seja consegui-lo, é apenas um estado civil hobbesiano, onde tudo pode ser sacrificado, a democracia inclusive, para escapar ao estado natural de guerra de todos contra todos e ao medo da morte súbita e violenta. Uma Europa de paz é crucial, mas se for apenas isso que a justifica pode ser perigosamente desoladora, impondo ditames decididos pouco democraticamente às vidas de europeus em dificuldades. Além disso, uma Europa que se faz sentir apenas na regulação que exerce num quadro de mercado sem fronteiras, apesar de os Estados-membros persistirem como potências económicas soberanas entre si em competição, desde logo fiscal, Portugal incluído, é uma Europa “estado mínimo”, sem estado social, perfeitamente consentânea com o desenho ideológico e de governação que o neoliberalismo perfilha, mas claramente adversa ao mantra retórico do “modelo europeu de desenvolvimento”. Em suma, também não serve a Europa estado mínimo que temos tido.

Uma UE com orçamento para funções sociais equiparáveis a um estado social, políticas de emprego, de apoio ao desemprego, de garantia de rendimento aos jovens, não se faz com candidaturas ao Fundo Social Europeu. Por meritório que seja, não é com uma provisão para meia dúzia de anos inferior à receita fiscal de Portugal de um ano que a UE pode agarrar a dimensão “social” da “coesão económica, social e territorial” de uma população de quinhentos milhões. Sem um estado social europeu a sério, num contexto de crescimento das desigualdades dentro dos Estados-membros e entre os Estados-membros, não há caminho para a coesão social, mas sim para tensões disruptivas crescentes sobre a paz social no espaço europeu.

Enquanto a experiência de casa comum sobreviver no imaginário dos cidadãos europeus, sobretudo dos que não conheceram fronteiras fechadas, é possível um futuro para a UE.  Mas para isso não contam apenas as fronteiras físicas. Contam também as fronteiras sociais da desigualdade, da exclusão, da discriminação, do integrismo. Sem as abrir não é possível fazer comunidade. E sem fazer comunidade não é possível fazer Europa.

Não é preciso ser federalista, nem é preciso ser menos crítico do que um eurocéptico. O tempo em que a história europeia era a história do mundo acabou. Agora, o referente é uma história global, onde não há partes à parte ou acima das outras partes. Sob este referente, nenhuma condição migrante é inteiramente alheia ao que aqui se passa, nenhum direito dos trabalhadores aqui é alheio ao que se passa longe. Não desistir da democracia europeia, sobretudo para um pequeno país, é poder ser parte e tomar parte do futuro global. Votem, se faz favor.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.