O ar rarefeito tem menos concentração de moléculas de oxigénio. Fica a faltar ar para respirar o mesmo oxigénio. Em altitude, longe do chão, podemos não ter pulmões que cheguem.
Esta rarefacção é uma boa metáfora para pensar o que está a acontecer aos lugares que compõem os territórios de sentido e afectos que habitamos. Vemos cidades e povoações cada vez mais iguais, como se fossem reprodução industrial de um modelo pré-definido. O prêt-à-porter e o pré-fabricado replicam-se em formas prontas de tudo, desde as batatas e os pastéis pré-fritos, os emoticons pré-tipificados das redes sociais, as casas modulares prontas a habitar, o pronto-a-pensar que o ChatGPT nos vai trazendo, a vida toda cada vez mais prêt-à-vivre de acordo com os modelos que o mercado já preparou. É só escolher e comprar.
Os lugares das compras são, aliás, exímios exemplos desta prontidão suspensa do mundo – entramos numa grande superfície como se entrássemos no mesmo sítio não importa a sua localização, seja na Terrugem, no Intendente ou em Freixo de Espada à Cinta, como se cada uma destas “superfícies” fossem porções de um país que existe fora do território, com a mesma climatização, as mesmas prateleiras, os mesmos cheiros. Parece exagero, mas é demasiado preparado o que nos chega à mesa, às mãos, aos caminhos, à vida.
Muito disto tem que ver com a globalização. Como temos uma experiência do tempo cada vez mais igual em todo o planeta, um tempo de relógio, contínuo, que extingue a diversidade de temporalidades, também a globalização vai impondo de cima para baixo um esquematismo dos lugares. Lugares assim, abstractos, decalcados de um modelo, são como lugares concebidos em altitude, demasiado longe do chão. Não são deste mundo.
O filósofo Günther Anders falava de um “platonismo industrial”, pois via que as coisas concretas da vida eram cada vez mais apenas cópias de modelos de fábrica. Poderíamos dizer, com Anders, que hoje os lugares estão rarefeitos na medida em que são apenas cópias de lugares modelares que não são deste mundo de carne e osso.
Os lugares acusam rarefacção quando são pré-feitos, abstractos, cópias cada vez mais iguais de um modelo. Mas esta rarefacção evidencia-se ainda no novo universo dos lugares virtuais. Cada vez mais habitados, pelo menos na medida em que passamos lá muito tempo, são genuínos lugares. E, contudo, não sendo mais do que uma sombra do que são os outros lugares, onde se está por inteiro, de espírito e corpo, estes novos lugares são expressão por excelência da rarefação.
Lugares rarefeitos, concebidos a partir de uma forma exterior aos próprios lugares, abstracta, perdem densidade, como se as suas moléculas de lugar rareassem. Um lugar faz-se de dentro, dos hábitos a que convida e que o habitam – habitar e hábito são palavras com a mesma origem etimológica. Esse vai-e-vem repete, mas de uma maneira oposta à da repetição maquinal, meramente reprodutiva, que entrega como produto o mesmo.
A repetição do habitar é criadora, permite que algo novo suceda sobre ela, por ela, através dela. Os lugares diferenciam-se assim, através de repetições que geram uma singularidade. Regar todos os dias um canteiro, habitar uma casa, caminhar por um jardim, as leituras e a música a que se volta, os amigos que se encontram, os companheiros da refeição e da vida, em todos eles rotinas abrem para um novo, como olhar para uma mesma paisagem e todos os dias encontrá-la diferente.
A este regime da repetição criativa, que, de dentro, singulariza um lugar, pode chamar-se cultura. Fazer lugar é uma prática de cultura. Mesmo os lugares não habitados são concebidos a partir de uma questão em torno de uma relação de estar neles. Se são ruínas persiste a memória de um habitar passado, ou a sua imaginação. Dificilmente conceberíamos um lugar sem imaginar uma maneira de estar nele. Se são utopias, a imaginação inverte-se: o que se imagina é o próprio lugar conveniente para um estar que se deseja.
Nesta era de lugares rarefeitos, precisamos de uma concepção de lugar rasante ao chão, com ar denso e respirável. Esse é o papel territorial da cultura. Não apenas porque fazer lugar é uma prática de cultura – entendida como repetição criativa, de cultivo, que vai diferenciando um lugar de dentro, endogenamente, a partir do chão da vida –, mas porque a própria criação cultural é sempre uma proposta e uma promessa topológicas. A cultura é pulsar dos lugares densos, mas, além disso, é ela própria pulsão de lugar. Ela “lugareja” como os lugares se cultivam. Os lugares de cultura – teatros, casas de música, de espectáculo, cinemas, livrarias, feiras, etc. – convidam a fazer da obra de arte um lugar. Por isso, são como que lugares de intensidade redobrada.
A cultura é essencial à preservação de uma topologia da diversidade, muitos lugares a fazerem-se singularidade, um território de lugares onde não se distingue natureza e cultura, onde cada espacialização é uma história no tempo e cada temporalidade um estar no mundo. Mas não basta a diversidade. A cultura promove ainda uma ecologia dos convívios. Se os lugares são enraizamentos, muitos deles móveis, a cultura é um convite à mobilidade desses enraizamentos.
Numa era em que os lugares são reflexos uns dos outros, e em que esperamos que cada outro nos espelhe, veja-se como o turismo vai perdendo qualquer ambição da metamorfose da viagem. Em vez de se imaginar um viajante que regressa transformado pela viagem, o turista compra um pacote que sobretudo espera validar à chegada. A esta pobreza da multiplicação em espelho de um lugar de ninguém, globalmente reproduzido, a cultura tem a potência de contrapor uma multidão de lugares próprios, cada qual um convite a sentir-nos a partir de um lugar singular que não nos espelha.
O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.