Assinalam-se este ano os 75 anos do fim da Segunda Guerra Mundial. Data redonda que constituiu uma oportunidade para se pensar e problematizar o passado e a memória, como também construí-los, questioná-los e desconstruí-los. Em tempos de pandemia, migrações de larga escala e novos fenómenos de sujeição humana, com o perigo de escalada dos extremismos na vida política, vale a pena refletir sobre a situação contemporânea.
Durante muitos anos, parece que os olhos se fecharam perante os corpos perdidos no mar, empurrados pela violência ou pela escassez para um ciclo migratório. Contudo também se cerraram perante a sofreguidão daqueles que faziam dinheiro montando e explorando redes de migração clandestina que, por vezes, acabam em mercados ilegais, próximos do odioso tráfico de escravos de antigamente.
Os tempos europeus de abundância fizeram esquecer, porque os europeus se forçaram a não lembrar, os horrores da guerra que mais do que matar pessoas, ameaçaram destruir qualquer sinal de humanidade e urbanidade para com o outro, ou seja, para aquele que era classificado como outro. Entre as vítimas civis e militares dos bombardeamentos, podemos acrescentar as outras, as vítimas da intolerância, do racismo e do extremismo. Entre estas podemos colocar numa escala decrescente dos mais reconhecidos para os menos memorializados, os judeus, os ciganos, os comunistas, os homossexuais e os defensores de qualquer liberdade que vivessem em território alemão ou nos países ocupados pela Alemanha de então.
As perseguições não foram letais ao início, nem gerais. Foram sendo seletivas, indo dos alvos mais fáceis e pelos quais a sociedade não nutria simpatia nem teria intenção de agir, até atingir o grau da solução final que levou mais de uma década a construir. É preciso lembrar que os judeus, primeiro, proibidos de exercer certas atividades profissionais e de lazer, posteriormente, foram colocados em guetos, depois foram enviados para campos de trabalho e, só mais tarde, remetidos para os campos de extermínio. A racionalização dos processos de discriminação e perseguição que foram sendo convertidos em lei, mostram como existem armas políticas, muitas vezes toleradas pelas sociedades, para seletivamente controlarem determinados grupos sociais.
Recentemente, saíram três livros que refletem a construção do passado e da memória, mas também a sua desconstrução, com as devidas consequências para o presente. Trata-se de três obras escritas no feminino, de autoras com origem alemã, mesmo que reunindo outras nacionalidades, abrangendo ensaio, ficção e biografia. São dados à estampa por três editoras portuguesas, num tempo em que a sociedade nacional se vê confrontada com novos desafios, como a potencial chegada e integração de refugiados, a normalização de discursos discriminatórios face a algumas comunidades da sociedade nacional e uma tendência internacional para os países se fecharem em si próprios, reclamando uma onda de nacionalismo.
Onde se guarda então esse passado temível da Europa? Como são guardadas as memórias? Vale a pena relembrá-lo 75 anos depois? Estes três livros ajudam-nos a responder a estas questões.
A geração seguinte
O final da Segunda Guerra Mundial é inúmeras vezes associado aos baby boomers, aqueles que beneficiaram do final da guerra e da prosperidade que em seguida se instalou no mundo ocidental genericamente falando. Mas existe uma outra geração nascida durante a guerra e ainda com tenra idade quando o conflito terminou. Entre estes, encontramos as vítimas civis dos bombardeamentos, os órfãos da guerra, as vítimas nascidas dos campos de trabalho e extermínio e os filhos dos que perderam a guerra.
O livro de Tania Crasnianski, uma autora que reúne na sua genealogia familiar uma origem russa, francesa e alemã e cujo avô materno foi piloto da Força Aérea Alemã, a Luftwaffe, intitula-se precisamente “Os Filhos dos Nazis” e foi reeditado em maio deste ano pela editora Guerra e Paz. Dedicado aos seus filhos, o livro de Tania Crasnianski baseia-se na forma como os filhos de destacados nazis, boa parte deles julgados pelo Tribunal de Nuremberga, lidaram com a memória e a relação com os seus pais. Podemos ler sobre os descendentes de Himmler, Göring, Hess, Frank, Bormann, Höss, Speer e Mengele. Uns mais conhecidos que outros, todos tiveram responsabilidades políticas e militares assinaláveis durante o período da Segunda Guerra Mundial e de alguma forma souberam e lidaram com as atividades persecutórias do regime que iam para além do desencadear do conflito armado.
Percorrendo a história de cada um dos descendentes, a autora foca-se, sobretudo, na sua relação com os pais e no modo como estes se relacionaram com a sua memória e com eles (sobretudo aqueles que sobreviveram após o julgamento ou que fugiram à justiça). Uma das interessantes conclusões da autora é que a defesa e adesão às ideias paternas têm uma profunda base na relação que os descendentes mantiveram com os seus progenitores, incluindo as suas mães que foram alvo de processos de desnazificação. Contudo, este desfilar de nomes e biografias é também acompanhado pelas suas relações presentes ou mantidas até ao momento da sua morte com os movimentos de extrema-direita, de alguma forma reivindicativos da herança das ideias nazis.
Percebemos, então, que nem movimentos nem ideologia estão complemente mortos, sobretudo, junto de alguns grupos de radicais que, silenciados pelo correr dos acontecimentos, pela derrota militar e por serem contrários à tendência dominante na sociedade, esperam um momento mais favorável para a sua ação. Esta reedição contribuiu para relançar luz sobre a dificuldade de distanciamento total face a certas ideias que estiveram na génese educacional de algumas destas pessoas, alertando para o risco do seu ressurgimento, numa Europa que a qualquer momento se pode fragmentar.
Assim, o processo de construção de memória destas pessoas dependeu mais de fatores relativos como a sua relação com os pais do que propriamente dos processos de construção de memória coletiva que foram instaurados. O que se verifica para o caso dos nazis pode perfeitamente ser válido para um conjunto de vítimas de guerra, que vivendo as suas consequências na primeira pessoa, acabou por gerar a interpretação do seu próprio passado, decidindo que parte da história queria manter e recordar.
Quando a ficção explica a realidade
“A Casa Alemã”, de Annette Hess, editado em abril deste ano pela Bertrand Editora, marca o início da carreira literária desta jornalista alemã, convertida em argumentista e escritora, que decide colocar no centro da ação do seu livro um julgamento a decorrer em Frankfurt, vinte anos depois do final da guerra. Esse julgamento tinha como réus homens acusados de crimes de guerra perpetrados em Auschwitz, o mais conhecido campo de concentração, com extensão em campo de extermínio dos nazis.
Bem escrito e com uma prosa que consegue levar o leitor até à última página sem qualquer dificuldade, este livro incide, essencialmente, sobre o esquecimento que a sociedade alemã em particular e as sociedades ocidentais em geral impôs aos processos que vitimizaram milhares de pessoas durante todo o período da guerra. Um dos problemas levantado é a questão da culpabilização e até que ponto foi possível incorporar a culpa num único homem ou grupo de homens, Hitler e os seus mais diretos colaboradores, quando toda uma sociedade participou de algum modo nos processos de perseguição a grupos da população.
Através das suas personagens a autora procura algumas respostas e recebe, com custo, uma das possíveis justificações: “Naquele tempo fomos felizes. Pela primeira vez eu tinha um emprego estável e tinha a minha família ao pé de mim”. Era o cozinheiro dos oficiais de Auschwitz que assim falava, relembrando como começara a sua vida familiar e como depois da guerra pretendera esquecer tudo o que vivera. Também algumas vítimas quiseram esquecer, outras viveram apenas para condenar os seus agressores, outras ainda claudicaram quando enfrentaram os culpados dos abusos sofridos… Isto, porque independentemente da etnia, todos os seres humanos são diferentes e têm as suas próprias fragilidades.
A jovem mulher, personagem principal, desta Alemanha que procurava esquecer o Holocausto, é também alguém confrontado com a questão de género, com as dificuldades de ser uma mulher a procurar o passado, a construir a sua independência, numa sociedade que ainda via as mulheres como subordinadas aos maridos. O retrato traçado no livro ultrapassa apenas a memória da guerra. Tenta colocar esse passado no centro de uma sociedade que tudo faz para se esquecer dele, enquanto novas realidades despontam, como a libertação e os direitos da mulher, a nova vaga de imigrantes, também eles, por vezes, alvo de perseguição.
Se Auschwitz está no centro, é apenas para lembrar os resquícios que este e outros campos de concentração e de extermínio deixaram na sociedade alemã, mesmo depois de eliminados da memória coletiva de um modo personalizado. Quer isto dizer que, por muito que se lembre este passado recente como algo coletivo e sem direito a nomeação individual, existem pessoas que individualmente não reconheceram a sua culpa ou a malignidade daquela ação persecutória dos que eram julgados como outros e diferentes.
Recordar, depois de esquecer
O livro de Irene Butter, com a colaboração de John D. Bidwell e Kris Holloway, intitulado “A Raparida Que Acreditava em Milagres: do Holocausto à Esperança”, editado pela Casa das Letras em março deste ano, reporta-nos à história da sua primeira autora. O livro, autobiográfico, centra-se na história de Irene Hansenberg, uma judia alemã que esteve exilada na Holanda até ser capturada e enviada para um campo de trabalho e, posteriormente, para um campo de concentração.
O relato do livro começa com a história de uma menina judia que viva em Berlim, cuja felicidade foi interrompida pelo início da perseguição aos judeus. Depois do período vivido na Alemanha, com a perda de direitos de cidadania dos judeus, até às vivências na Holanda, novamente interrompidas pela invasão nazi, percebemos como este processo foi racionalizado, como alguns conseguiram sobreviver e como a natureza humana é universal.
Sem julgamentos, apenas com descrições, a biografia tenta reconstruir a vivências de uma menina que se tornou jovem durante a temível perseguição nazi. Irene converteu toda a sua experiência num olhar positivo sobre a construção da paz, sendo cofundadora de uma associação de mulheres judias e árabes que procuram assegurar a paz e o diálogo entre estas duas culturas e sociedades.
As suas descrições, os diálogos, a subtiliza de uns ambientes em contraste com a brutalidade de outros, faz deste livro um importante documento sobre a tentativa de desumanização das relações entre pessoas e das poucas formas de como lhe resistir. O testemunho de Irene Hansenberg Butter é essencial para uma releitura das relações (des)humanas em tempos de conflito, mas também em períodos de paz.
Olhares femininos sobre a paz
Apesar de serem obras que retratam a memória da guerra e como o passado é vivido no presente, estas três mulheres lançam um olhar feminino sobre como reinterpretar e problematizar a memória da guerra em tempos de paz. As três acreditam que só assim se poderá assegurar a reconstrução da paz, trilhando um caminho de memorização, com um forte pendor humanista, atendendo a todos os argumentos e condicionamentos e nunca trazendo para os valores do presente o que aconteceu há sete décadas atrás. Estes olhares humanistas, mas problematizadores e nada desculpabilizadores, permitem ver sobre diversas perspetivas o mesmo conflito e as memórias que a partir daí podem ser construídas.
Na gíria nacional, diz-se que Portugal foi poupado à guerra. Sabemos que não é verdade, o país pagou um preço pela sua neutralidade, durante e depois do conflito. Contudo, os desafios globais da Europa, ancorados nos problemas contemporâneos como a migração e os discursos racistas, mascarados de nacionalismo, mostram como obras como estas não são só atuais, são também essenciais para uma compreensão humana de um conflito que não queremos ver repetido e de um discurso que não pretendemos ver normalizado.