Neste último fim de semana, quase todos os portugueses tiveram um ou outro motivo para celebrar. Assim, se uma parte do país saiu à rua devido ou à crença religiosa ou à paixão clubística, uma outra parte ficou agarrada ao ecrã a assistir à vitória no Euro Festival da Canção. Ouviu-se gritar por Portugal, pelo Benfica, pelo Papa. Organizaram-se para isso umas tantas romarias, umas mais espontâneas, outras mais planificadas. E, curiosamente, no rescaldo destas múltiplas celebrações, o país conhece o mais recente número da taxa de crescimento do primeiro trimestre, alcançando os 2,8%. Ironicamente, a intensidade festiva do fim de semana quase coincidiu com o momento de divulgação do maior crescimento trimestral da última década. Este dado, apesar de meramente coincidente, não deixa de deter um interessante valor simbólico, na medida em que a feliz simultaneidade parece fortalecer a ideia de que o país pretende romper de vez com a narrativa construída no período correspondente à intervenção externa dos anos da ‘Troika’.

A este respeito, a recorrente afirmação que durante esses anos se propagou sobre Portugal viver acima das suas possibilidades abriu campo, como é sabido, a uma suposta naturalização e legitimação política da agenda de austeridade que se concretizou, por exemplo, na erradicação parcial de certos símbolos históricos e identitários. O país foi assim sujeito a uma limitação de algumas das suas expressões festivas e comemorativas. A obsessão pelo fim de um conjunto de feriados nacionais laicos e religiosos representou o momento mais alto dessa investida sobre o simbólico. A festa popular passou a ser vista como um excesso, um desperdício ou um luxo ao qual a maior parte das pessoas não teria condições para almejar. Ou seja, o programa de austeridade para além de ter significado uma engenharia na esfera da economia e dos direitos laborais e sociais, implicou igualmente uma reconfiguração (ou, pelo menos, uma secundarização) do simbólico e, consequentemente, de desvalorização da cultura popular.

Todavia, a celebração e a festa sempre tiveram uma função nas sociedades, designadamente enquanto válvula de descompressão. Como foi amplamente estudado, a festa significava nas sociedades rurais uma espécie de parêntesis no tempo em que este era vivido como uma rutura temporária de efervescência, de frenesim e de exaltação coletiva perante o sagrado, mas que logo a seguir retomava a continuidade da vida de todos os dias. Como refere Pierre Sanchis no seu excelente livro intitulado Arraial: Festa de um Povo (1992, Dom Quixote): “só há rutura para assegurar a continuidade” (p.33). Assim, ao quebrar essa relação entre rutura e continuidade – que de certo modo perdura nas sociedades –, a austeridade produziu uma artificialidade onde a festa se transformou num momento de excecionalidade e de extravagância inacessível aos supostos incumpridores, como se esta se tratasse de uma ameaça ao funcionamento das economias. Segundo esta conceção, os povos sob assistência teriam de ajustar o seu direito a festejar. Deveriam, assim, conter-se a bem da racionalidade e da disciplina financeira e económica. Esta destituição parcelar do simbólico cavou fundo nas consciências e deixou o seu lastro.

Felizmente, a recuperação económica e política do país não esqueceu a dimensão dos símbolos. Os feriados foram repostos e as romarias retomaram o seu curso, sem com isso ameaçarem o desenrolar da atividade económica e dos seus níveis de produtividade. O povo festejou amplamente. O país não descarrilou nem deixou de trabalhar, pelo contrário, até se deu ao luxo de crescer quase 3%. Foi uma coincidência nas datas, é certo, e não convém por isso exacerbar essa similitude. Mas, não há dúvida, que a política dos atuais governantes soube perceber que para recuperar o país precisaríamos também de retomar a celebração e de festejar sem complexos de culpa. Tem sido também essa a sua perspicácia: a de repor o valor simbólico que estava sob ameaça. Celebre-se então os símbolos a que cada um tem direito, e que a vida continue…