Entrou em vigor no dia 2 de dezembro o Decreto-Lei n.º 214-G/2015, de 2 de outubro, diploma emitido no uso da autorização legislativa concedida pelo artigo 1.º da Lei n.º 100/2015, de 19 de agosto, e através do qual se aprovou a anunciada reforma do Contencioso Administrativo português, compreendendo a revisão e republicação do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA) e do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF), e ainda alterações específicas ao Código dos Contratos Públicos, ao RJUE, à Lei de Ação Popular, à Lei de Acesso aos Documentos Administrativos e à Lei de Acesso à Informação Ambiental.

A revisão dos diplomas reguladores do processo do contencioso administrativo estava prevista desde a publicação da Lei n.º 15/2002, de 22 de fevereiro, e prometida há muito, tendo conhecido, porém, sistemáticos adiamentos. Após mais de uma década de aplicação, o Decreto-Lei n.º 214-G/2015, veio finalmente introduzir importantes alterações no edifício jurídico do contencioso administrativo e na organização e funcionamento dos tribunais administrativos, seja acolhendo as sugestões que a doutrina e a jurisprudência vinham propondo, ora harmonizando algumas regras processuais com o novo Código de Processo Civil de 2013.

Os trabalhos de revisão do CPTA e do ETAF decorreram a cargo da mesma Comissão que preparou o novo Código do Procedimento Administrativo (CPA), entretanto já publicado e em vigor (cfr. o Decreto-Lei n.º 4/2015, de 7 de janeiro), tendo seguido um percurso legislativo semelhante, embora mais dilatado no tempo. Com efeito, após a apresentação de um primeiro anteprojeto em fevereiro de 2014 e subsequente fase de consulta e discussão pública, o XIX Governo Constitucional daria à estampa, já em maio deste ano, novo anteprojeto. Seguiu-se a aprovação parlamentar e publicação da Lei de Autorização (Lei n.º 100/2015, de 19 de agosto), a consequente aprovação da revisão em Conselho de Ministros (27 de agosto) e, finalmente, a publicação do Decreto-Lei n.º 214-G/2015, de 2 de outubro.

Termina aqui, contudo, o paralelismo com o processo de aprovação do novo CPA. Ao contrário do que ocorreu com o Código do Procedimento, o CPTA e o ETAF sofreram apenas revisões, de maior ou menor extensão, não tendo por isso sido substituídos por novos diplomas, o que implica desde logo que, formalmente, continuem em vigor as Leis n.º 13/2002 e n.º 15/2002, respetivamente de 19 e 22 de fevereiro, e que, do ponto de vista substancial, a revisão destes dois diplomas não tenha alcançado a profundidade ocorrida com o novo CPA, razão pela qual se pode concluir que o Contencioso Administrativo português conserva os traços estruturantes introduzidos com a reforma de 2002/2004, porventura com a exceção da alteração estrutural traduzida na eliminação da tradicional bipartição entre ação administrativa comum e ação administrativa especial, substituída pela unificação de todos os processos não urgentes sob uma mesma forma, agora denominada “ação administrativa”.

Nas presentes linhas não se pretende, porém, apreciar as linhas essenciais introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 214-G/2015, até porque essa matéria já se encontra sobejamente estudada e dissecada pela nossa doutrina administrativista.

Do que se pretende aqui dar notícia, em breves linhas, é da duvidosa conformidade constitucional, em nosso entender, da opção assumida de operar a revisão de diplomas baluartes da nossa justiça administrativa por via de autorização legislativa e do consequente decreto-lei autorizado, nos mesmos termos, de resto, adotados para o procedimento administrativo.

Atente-se, para começar, que os diplomas alterados pelo Decreto-Lei n.º 214-G/2015 foram aprovados, na sua generalidade, por leis da Assembleia da República (apenas dois dos oito diplomas em causa revestem a forma de decreto-lei). Ora, sem prejuízo das reservas que se podem suscitar, do ponto de vista da conformidade à Constituição, quanto à admissibilidade da autorização legislativa conferida ao XIX Governo Constitucional para legislar sobre matéria tão sensível, porque situada no cerne da regulação da conflituosidade entre a Administração Pública e o seus administrados, parece-nos de lastimar que a alteração a diplomas (nomeadamente o CPTA e o ETAF) que constituem os pilares do contencioso administrativo português, não tenha sido objeto de debate parlamentar alargado e de uma ampla participação pública, tanto mais que estão em causa soluções cuja legitimação só teria a ganhar com tal debate, como a alteração estrutural em relação ao modelo herdado de 2002/2004 operada com a unificação de todos os processos não urgentes sob uma mesma forma processual, o alargamento do âmbito da jurisdição administrativa, ou o considerável aumento do universo de litígios administrativos que podem ser submetidos a arbitragem.

Ademais, afigura-se algo incongruente que, por exemplo, o novo Código de Processo de Civil, com o qual se pretende agora harmonizar o regime processual administrativo, tenha sido aprovado sob a forma de Lei (a Lei n.º 41/2013, de 26 de junho), ao passo que as leis que aprovaram o CPTA e o ETAF sejam objeto de alterações, nalguns casos significativas, por via de decreto-lei autorizado.

Mas, a montante da questão da legitimação parlamentar, a verdade é que a análise do Decreto-Lei n.º 214-G/2015, bem como da própria Lei habilitante, suscita efetivamente algumas questões de desconformidade à Constituição, nomeadamente em dois pontos que nos parecem inequívocos:

Desde logo, o Decreto-Lei n.º 214-G/2015, a coberto da autorização conferida pelo artigo 3.º da Lei n.º 100/2015, contém uma norma (o artigo 4.º) que altera diversas normas do ETAF incidentes sobre o estatuto dos juízes dos tribunais administrativos e fiscais, alterando, nomeadamente, o regime de nomeação e de habilitação prévia dos presidentes dos tribunais administrativos de círculo. Trata-se de uma solução que, para além de contrariar do ponto de vista formalmente legislativo a prática instituída, aparentemente colide com a reserva absoluta de competência legislativa da Assembleia da República, na medida em que o estatuto dos juízes inclui-se na previsão do artigo 164.º, al. m), da CRP, e não na esfera da reserva relativa delimitada pelo artigo 165.º, n.º 1, al. p), que maioritariamente se entende como abrangendo apenas os magistrados do Ministério Público.

O artigo 164.º, al. m), da nossa Lei Fundamental pode igualmente ser convocado para se questionar a constitucionalidade da alteração operada por decreto lei autorizado à Lei n.º 27/96, de 1 de agosto, designadamente ao seu artigo 15.º, na medida em que essa alteração, ao conceder expressão processual à sanção máxima da perda de mandato, implica com o estatuto dos titulares do poder local, suscitando-se a questão de saber se uma tal solução, ainda que circunscrita a aspetos processuais, não choca com a esfera da reserva absoluta da Assembleia da República.

Se outros motivos não se perfilassem, os acima expostos seriam bastantes para, pelo menos, se questionar a opção assumida de se conceder a um governo – seja ele qual for, note-se -, autorização para legislar sobre questões centrais da arquitetura e funcionamento da justiça administrativa, não apenas do ponto de vista da sua conformidade formal à Constituição, mas também pelo facto de essa solução ter implicado em termos práticos o cerceamento do debate parlamentar e a menorização da participação pública, que a importância das matérias em causa reclamava e impunha.

Não foi esse o entendimento, é certo, do Presidente da República, que promulgou sem mácula os dois diplomas, a lei de autorização e o decreto-lei autorizado, em coerência com uma particular aceção dos poderes presidenciais, bem evidenciada, aliás, na postura adotada com o processo de aprovação do procedimento administrativo, emanado da mesma comissão responsável pela presente reforma do contencioso administrativo.

Resta saber se o caminho trilhado é irreversível, ou se a Assembleia da República, agora com uma nova composição, usará os mecanismos ao seu dispor, seja em sede de fiscalização sucessiva da constitucionalidade, seja no âmbito da apreciação parlamentar, para expurgar os vícios apontados às alterações legislativas introduzidas no nosso contencioso administrativo, garantindo do mesmo modo uma maior legitimação democrática à reforma empreendida, e a recolocação da atividade legislativa no seu centro nevrálgico, que deve ser a lei parlamentar.

Alexandre Nuno Capucha
Jurista e mestre em Direito