Madeira 1936

Na tarde de 6 de Agosto de 1936, o Governo de Salazar forneceu aos jornais uma nota oficiosa onde informava “terem ocorrido motins populares” na ilha da Madeira (…), “tendo os desordeiros destruído livros das repartições públicas do concelho da Ribeira Brava, e assaltado fábricas de manteiga na cidade do Funchal”.

E continua a nota: “os distúrbios teriam por pretexto o descontentamento pelo recente Decreto que organizou a indústria dos Lacticínios da Madeira. O Governo está resolvido a quebrar por uma vez a tradição de impunidade existente no arquipélago para casos semelhantes, pelo que ordenou seguissem imediatamente para o local dois barcos de guerra com aviação, conduzindo também um dos barcos uma companhia de caçadores com metralhadoras.”

Apesar da dimensão que assumiu, 557 prisões, 7 mortes e um número indeterminado de feridos, estamos perante uma revolta esquecida. Uma revolta da arraia-miúda, sem figuras de proa dos partidos da I República, de pessoas gradas da Maçonaria ou de altos postos militares.

Desde os inícios do ano de 1936, circulavam rumores por toda a Ilha da Madeira de que o Governo de Lisboa ia instituir “o monopólio do Leite”. E monopólio era uma palavra maldita. Ainda estava bem presente a Revolta da Farinha (1931) contra os grandes moageiros. Para as duas maiores empresas com acesso privilegiado aos corredores do Terreiro do Paço havia concorrência excessiva na indústria de lacticínios da Madeira e, nesse contexto, pressionavam a saída de novas leis.

O decreto-lei 26 655 de 4 de Junho de 1936 – o decreto da Revolta do Leite, que cria a Junta Nacional de Lacticínios da Madeira (JLM), não anda longe do que o povo pressentia. Traz uma reorganização muito musculada e a pender para a defesa dos grandes interesses das duas maiores empresas.

Junta de Lacticínios

A lei conferiu-lhe poder de interferir, nos preços do leite, no rateio das quotas de distribuição pelas empresas de fabrico da manteiga, na localização dos postos de desnatação e, de facto, a passagem da gestão do sector para as mãos das grandes empresas. A população temia, e bem, que a liberdade de comercializar o preço do leite deixasse de existir ou se tornasse muito limitada. Desde logo, o decreto da criação da Junta reduziu o número de postos de desnatação de 1108 para 320. Esta situação provocou, de imediato, repulsa e grande descontentamento.

A revolta é ainda potenciada pela inabilidade do Presidente da Junta de Lacticínios, Dr. Jorge Pedreira que, numa conferência de imprensa a 23 de Julho de 1936, anuncia a entrada do decreto, impreterivelmente, a 1 de Agosto próximo. E sem informação alguma, sem os padres anunciarem o decreto nas missas, como era costume fazer, tenta o Presidente da Junta avançar. Assim, sete concelhos (Santana, Machico, Santa Cruz, Funchal, Câmara de Lobos, Ribeira Brava e Ponta do Sol) se revoltam e começam as movimentações de contestação à Junta de Lacticínios.

A Revolta inicia-se no Faial, concelho de Santana, com ajuntamentos da população de todo o concelho junto da Igreja do Faial. É para aí enviado o navio Sagres pelo Governador civil, o comandante Goulart de Medeiros e forças da polícia por terra para dispersar e reprimir as pessoas que se amotinaram.

Era pároco desta freguesia, o Pe. César Miguel Teixeira da Fonte, que, em Abril, tinha sido abordado por agricultores acerca da legislação que, se dizia, ia sair. Havia muitas intrigas no concelho de Santana contra o padre por parte de algumas “forças vivas”, designadamente do Secretário da Câmara, Alexandre César Teixeira de Mendonça, também director de uma unidade de produção de manteiga da fábrica Burnay, instalada em Santana, onde auferia um ordenado de 1500$00. Teixeira da Fonte era, porém, muito querido da população.

Teixeira da Fonte estava em retiro no Seminário do Funchal. O Governador convence-o a ir para o Faial alegando ser ele a única pessoa capaz de pôr ordem na população. Teixeira da Fonte aceita, vai nessa noite, fala à população no dia seguinte e é marcada uma reunião para segunda-feira, na qual o Governador se compromete a receber uma Comissão de agricultores do concelho no Palácio de São Lourenço.

A agitação estende-se durante mais de um mês (Agosto e boa parte de Setembro) pelos concelhos já referidos. São Vicente adere à revolta, passando assim a oito concelhos (11 no todo). Houve manifestações, várias incursões da polícia para proceder a prisões, tendo o povo em muitos casos enfrentado a própria polícia. Machico e Ribeira Brava foram os concelhos de maior agitação e com mortes a assinalar.

O padre Teixeira da Fonte que, na minha leitura, caiu numa cilada, acabou por ser preso, neste processo, a 11 de Setembro no hotel/pensão do Funchal, onde costumava pernoitar quando ia ao Funchal.

As condições de prisão na Madeira

As prisões efectuadas ao longo dos meses de Agosto, Setembro e Outubro foram em número avultado, faltando espaço para as acomodar. Foi necessário proceder a uma adaptação de recurso e mais uma vez o Lazareto, que já tinha desempenhado outras funções, foi chamado a mais esta função. Três semanas após o início da Revolta estão detidos no Lazareto 240 homens e, no subterrâneo, as mulheres de Machico e Santa Cruz, que aí permaneceram detidas durante dez meses.

A transferência de presos para Angra do Heroísmo

Devido à exiguidade de espaço na Madeira são enviados para Angra 53 presos da Revolta do Leite. Aí estavam prisioneiros como Bento Gonçalves e outros já destinados ao Tarrafal.

Estes 53 presos são enviados no navio Luanda que aporta no Funchal no dia 20 de Outubro por volta das 23 horas. O navio Luanda que vinha de Lisboa com vários presos políticos a bordo, muitos deles com destino ao Tarrafal, o novo campo de concentração feito à semelhança dos campos de Hitler, transportava também os 60 marinheiros ligados à Revolta dos Marinheiros no Tejo.

Essa ligação origina a convivência durante a viagem e nos dias de permanência em Angra do Heroísmo, de onde o navio Luanda parte para Cabo Verde com os presos para a abertura do campo do Tarrafal.

Persistem algumas teses que, sem fundamento, defendem que os 152 presos da primeira leva para o Tarrafal integravam detidos da Revolta do Leite. A confusão deve-se à coincidência na viagem.

O envio de presos para Lisboa  

Detidos há cerca de dez meses na Madeira e na Terceira, os presos são listados segundo o “grau de perigosidade” pelo subdirector da PVDE (Alcide Pedreira) e enviados a 22 de Junho de 1937 para diversas prisões no Continente. Os mais “perigosos”, arrumados em duas listas, vão para Peniche.

Uns quantos jovens militares foram parar ao forte de Elvas, onde conviveram durante dois anos com os republicanos espanhóis, detidos pelo Governo de Salazar nesse mesmo presídio. As dez mulheres, todas do Concelho da Ribeira Brava, vão para a cadeia das Mónicas, onde ficam a conviver com prostitutas, ladras e assassinas. Todos os presos enviados para o Continente estiveram detidos entre 2 e 3 anos, tendo o Tribunal Militar Especial que “os julgou”, atribuído como pena, o tempo de prisão.

Mais uma Revolta, de entre muitas, que revisitamos e a merecer lugar na História da Madeira e do País.

O autor escreve segundo a antiga ortografia.