Os resultados das eleições italianas no início de março trouxeram ao de cima um debate em torno da capacidade dos partidos tradicionais europeus oferecerem uma solução que consiga ir ao encontro das exigências crescentes do eleitorado, que aparenta estar cada vez mais afastado da agenda tradicional dos partidos do centro, naquilo que pode estar para além de uma desilusão conjuntural com os atores políticos tradicionais. Em Itália, e pela primeira vez num país europeu,  os partidos com discursos eurocéticos e antissistema obtiveram mais de 50% dos eleitos nas duas câmaras legislativas (Senado e Câmara dos Deputados), tornando à partida qualquer solução de governo inviável sem a inclusão de uma destas forças políticas eurocéticas.

As eleições em Itália são um aviso à navegação europeia

Os desafios do país transalpino pós-eleições são ilustrativos e complexos. Numa primeira fase, será necessário construir uma maioria que confira suporte a um executivo que possa governar e evitar novas eleições. Numa segunda fase, obter um acordo que seja capaz de manter uma agenda de reformas necessárias para reequilibrar a economia. É neste último ponto que o novo cenário político representa uma novidade. Apesar de ser de menor probabilidade, hoje seria possível construir uma “grande coligação” formada por partidos eurocéticos para governar Itália – ao Movimento 5 Estrelas (M5S) juntar-se ia a Liga e o FdI (Fratelli d’Italia), cuja agenda poderia colocar as importantes reformas no mercado de trabalho e nas pensões encetadas pelos anteriores governos,. liderados por Monti e mais recentemente por Renzi, e assim colocar nova pressão sobre as contas públicas e o endividamento.

No limite, contudo, estaria um eventual referendo sobre a permanência na União Europeia, onde o mandato de saída teria elevadas hipóteses de vencer. Este Uscitalia, teria contornos claramente mais dramáticos do que a saída do Reino Unido, uma vez que, ao contrário destes, a Itália utiliza o euro como moeda. Um problema que teria visibilidade imediata em termos sistémicos na zona euro.

As raízes desta espécie de rebelião dos eleitores não são recentes…

Uma profunda alteração do paradigma político tomou conta do palco mediático nos países desenvolvidos, com implicações não apenas para os mercados financeiros mas também para as agendas dos investidores, que aguardavam uma maior normalização do mundo económico após a grande recessão de 2008. Para onde quer que se olhe, o centro político moderado, seja de esquerda ou de direita, parece agora estar sob fogo do que se pode chamar uma verdadeira rebelião dos eleitores, que, ao desafiar o chamado establishment – na prática, o sistema político tradicional –, têm tendido a beneficiar novas forças políticas que apelam a valores populistas e que representam, na prática, um regresso ao protecionismo comercial e à soberania nacional.

Esta tendência está longe de ser circunscrita ao que verificámos na Grécia, no referendo do Reino Unido ou nos EUA, onde também começa a tomar forma uma agenda contra o comércio internacional, em detrimento de maiores barreiras protecionistas. Para a União Europeia,  lidar com o aumento do peso eleitoral dos partidos mais protecionistas e eurocéticos representa um grande desafio para os próximos anos.

Contudo, as razões desta rebelião não são de agora e, de acordo, com alguns analistas geopolíticos, encontram-se bem enraizadas nas sociedades ocidentais. A verdade é que o peso representativo do centro político nos países desenvolvidos tem vindo a cair desde o princípio do século, tendo acelerado substancialmente depois de 2007. De acordo com uma análise produzida pela equipa de análise macro do Barclays (“The policies of rage”), o centro político valia em média cerca de dois terços das preferências dos eleitores do mundo desenvolvido. Em 2015, apenas metade dos eleitores escolhe um partido tradicional do centro-esquerda ou centro-direita.

… nem estão confinadas a razões simples de solucionar.

No centro do discurso dos movimentos políticos europeus que têm beneficiado desta alteração do paradigma estão, essencialmente, razões políticas ligadas à soberania dos países, à limitação da representatividade dos eleitores (com a Comissão Europeia, um órgão não eleito, à cabeça das preocupações), ao controlo das fronteiras e dos imigrantes que entram nos países europeus em virtude das preocupações com o aumento do terrorismo internacional, ou com os embates culturais das populações locais, decorrentes da entrada massiva de refugiados nalguns países.

Do lado mais economicista, o discurso é dominado pela preocupação face ao aumento do comércio internacional, à desigualdade na redistribuição dos rendimentos (mais impostos progressivos e maior apoio às camadas mais baixas) e a um sentimento extremado anticorporativo. Ou seja, a exigência de maior assertividade por parte dos governos em termos de tributação e regulação às empresas multinacionais. A vitória do “sim” à saída da União no referendo do Reino Unido e a inesperada vitória de Donald Trump assentaram, em muito, no aproveitamento destas dinâmicas em termos de discurso que, para já, se materializaram em mandatos para um maior protecionismo no mundo desenvolvido ocidental.

A erosão do centro político pode continuar…

Muitos dos condicionalismos do sistema tradicional político europeu ainda não foram ultrapassados, e até o acentuado ritmo da evolução tecnológica pode exacerbar algumas das causas estruturais deste dilema. Existe ainda muito trabalho para fazer em termos de política fiscal e monetária – a Europa não tem ainda todos os instrumentos de integração necessários para lidar no curto prazo com esta questão. Existe aliás um delicado exercício de equilíbrios entre os países do centro e da periferia que poderiam, inclusive, ser colocados em risco se esses instrumentos fossem utilizados neste momento.

… mas até que ponto a narrativa não se perderá?

Resta saber se haverá seguidores e, depois, se os mandatos acabarão por ser cumpridos – as notícias que vêm do outro lado do Atlântico sobre tributações ao comércio também não ajudam. Contudo, não é garantido que a narrativa política não acabe por ser minorada perante os factos reais – como já foi visto num passado recente, mais concretamente na Grécia.

No entanto, e ainda que em menor grau, os efeitos de um maior protecionismo global parecem ser evidentes. Haverá maiores restrições aos movimentos de bens e serviços, maior rigidez no mercado de trabalho (uma das premissas vitais do projeto do euro) e na circulação de capitais, tão importantes para gerar investimento produtivo e gerador de riqueza. Obviamente, estes terão impacto sobre o aumento da harmonização das regras internacionais de regulação em termos de produção, fiscalidade e de maior coesão de projetos supra regionais. Ou seja, colocarão a UE ou a Organização Internacional do Comércio ainda em maior risco de dissolução ou estagnação.

‘Bottom’s up’: Portugal pouco exposto ao fenómeno, mas muito ao risco global

Em última análise, poderá registar-se um menor ciclo de crescimento económico, em virtude da redução implícita do papel do comércio internacional. Para uma economia pequena como Portugal, menor globalização dos grandes mercados internacionais significa também menor capacidade para crescer, menor acesso aos centros de decisão, menor acesso aos nossos quadros qualificados para crescer individualmente e menor acesso ao capital internacional para financiar as empresas e gerar emprego. Talvez por isso, a queda do centro político seja mais moderada do que no resto da Europa – terá perdido cerca de 9% desde a década de 90.

Mas, nos dias de hoje, em que a tentação para o discurso político fácil e demagógico parece ser útil para gerir uma agenda política partidária em detrimento do interesse de uma agenda para o país, faz sentido incentivar a reflexão atenta sobre o que se está a passar à nossa volta. O mundo desenvolvido vai perder com uma eventual escalada dos políticos populistas na zona euro e do protecionismo económico, mas as consequências podem ter efeitos devastadores para um país que ainda depende muito da procura externa, como é o caso de Portugal.