Espera-se dos atores políticos pensamento estratégico. Isto é, capacidade para antever e acautelar o futuro. Isso obriga por vezes a tomar decisões em que o interesse do país se sobrepõe ao racional da economia. Essa abordagem pode aplicar-se ao caso da Saúde Militar, que tem de ser vista como um ativo do Estado. Ainda assim, uma certa elite política considera-a um privilégio de um grupo social minoritário, com o qual tem de se acabar, sem ter em consideração o potencial estratégico que ela encerra.

Em conformidade com este pensamento, na última década foram feitas várias reformas do Sistema de Saúde Militar (SSM), tema que não suscitou divergências maiores entre os diferentes partidos políticos. Os mais ingénuos acreditaram que essas reformas se iriam traduzir em ganhos de eficiência e de economia. Na verdade, traduziram-se em perdas de eficiência e de eficácia.

O sectarismo político levou a que, num país com insuficiência hospitalar, se fechassem hospitais militares por se entender que serviam apenas os militares, esquecendo que aquelas capacidades ainda apoiavam os ex-combatentes e que podiam ser maximizadas. Em tempo de paz, preenchendo lacunas do SNS nas regiões onde estavam instaladas, alargando a sua oferta a outros utentes civis, e, funcionando, em tempo de crise ou de guerra, como uma reserva da capacidade hospitalar em apoio do esforço nacional.

A referida elite estava convicta de que crise e guerra são meros exercícios virtuais e utópicos realizados nas escolas militares.

Resultado da redução (designada de reforma) levada a cabo em 2014, foram extintos os hospitais dos Ramos e fundidos no Hospital das Forças Armadas (HFAR). Os hospitais militares de Évora e de Coimbra foram transformados em Centros de Saúde. Isso significou, entre outras coisas, uma redução de 64% do número de camas disponíveis (de 690 para 250), quando Portugal tem apenas 3,4 camas/1.000 habitantes, contra uma média de 5,1 na União Europeia.

Pode argumentar-se ser o número de camas por habitante um indicador com limitações. Mas a verdade, é que a diminuição da oferta do setor público foi acompanhada por um aumento exponencial da oferta privada, particularmente em Lisboa e no Porto. Hoje é claro que o ataque ao SSM era apenas uma faceta da ofensiva contra o SNS levada a cabo pelos Governos da República.

A redução foi pretexto para grandes negócios. A Casa de Saúde da Família Militar (Av. Infante Santo à Estrela, em Lisboa) foi vendida em 2015, por ajuste direto, à Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, quando Santana Lopes era Provedor, pela módica quantia de 15 milhões de euros, um preço bem abaixo dos valores de mercado.

Na altura, Aguiar-Branco, seu colega de partido e ex-colega de governo, era ministro da Defesa Nacional. A antiga Ministra da Saúde Ana Jorge foi convidada para coordenar um grupo de trabalho, que iria estudar o futuro a dar àquelas instalações. Aí seriam instaladas várias unidades de cuidados paliativos, pequenas cirurgias e cuidados continuados, valências em que o SNS é deficitário.

Passados cinco anos, e após uma saída em passo de corrida, devido à urgência colocada pelos novos donos, as instalações continuam desertas e sem utilização.

Na lista das “cedências” há ainda a incluir o Hospital Militar de Belém (HMB), estabelecimento especializado no conhecimento e práticas clínicas na área das doenças infectocontagiosas (que falta faria hoje!), desativado em 2013. Com o seu encerramento o país ficou ainda mais pobre. O HMB foi cedido à Cruz Vermelha Portuguesa, por 25 anos, em troca de um investimento de 8,5 milhões de euros, que não se realizou. Entretanto, a Cruz Vermelha já o devolveu à fazenda, tendo ficado as instalações a apodrecer nos sete anos que nos separam daquela decisão.

Num momento em que os especialistas alertam para o aumento de doenças infectocontagiosas, Portugal não dispõe de nenhum hospital especializado no tratamento dessas doenças.

A sanha redutora não ficou por aqui. O plano previsto para o HFAR – Polo do Porto (HFAR-PP), face ao reduzido número de atos médicos ali praticados, ao público alvo e dimensão, e à adequabilidade do edifício, passa por transformá-lo num Centro de Saúde.

Ironicamente, quis o destino que as capacidades instaladas naquele Polo fossem as primeiras a acolher recentemente idosos recusados por um hospital do SNS, todos muito dependentes de cuidados urgentes, com uma média de idades superior a 80 anos e 65% infetados por Covid-19, colocando o HFAR-PP na linha da frente no apoio ao mais fragilizados e vulneráveis, e com uma missão que, provavelmente, nenhum outro hospital desejaria. Com a crise já instalada, as enfermarias estavam ainda a ser recuperadas.

O argumento kafkiano do Governo para “redimensionar” o HFAR-PP faz lembrar as manobras de certos governos para afugentar os utentes para os braços dos privados, debilitando o SNS e reduzindo a sua capacidade de resposta. Pois aqui funcionou o mesmo raciocínio. Com apenas 52% do seu quadro de pessoal preenchido, o HFAR não pode prestar um serviço médico satisfatório. A inexistência de um número significativo de especialidades afasta os utentes, que recorrem ao privado. Está assim explicado o reduzido número de atos médicos ali praticados, e a justificação cínica para fechar portas.

Para agravar a situação, durante os últimos oito anos, os Quadros Permanentes de Oficiais Médicos, Farmacêuticos e Médicos Veterinários estiveram praticamente sem ser alimentados, por decisão ministerial, apesar das propostas dos Ramos.

Os primeiros, enquanto especialistas nos cuidados de saúde diretos ao doente; os segundos, para garantir a logística farmacêutica (onde se inclui a produção, armazenamento e distribuição de medicamentos e produtos de saúde) e a defesa química; os últimos, na área da segurança alimentar e defesa biológica. Esta “desatenção” deliberada no recrutamento de especialistas em saúde, defesa química e biológica para as Forças Armadas causou fragilidades inaceitáveis.

Já em plena emergência causada pela Covid-19, e à pressa, foram mandados reabilitar e instalar camas nos centros de Saúde de Évora, Coimbra e Santa Margarida (cerca de 70 camas entre todos), até há uns dias reduzidos à prestação de cuidados de saúde em ambulatório, e sem qualquer capacidade de internamento.

Agora aparecem milagrosamente verbas para tudo: equipamentos de proteção individual e desinfetantes adquiridos a preços astronómicos (chegam a atingir 20 vezes o preço normal, sem garantia de os obter), resultado de não se ter uma reserva estratégica; obras 24h/dia, que tentam mascarar a irresponsabilidade e falta de visão estratégica sobre a saúde em geral e a saúde militar; aquisição de material hospitalar (camas, ventiladores, etc.). Na lista das verbas, aparece também dinheiro para reabilitar o desativado HMB, onde “descobriram” que há zonas de pressão negativa.

Fica-nos a dúvida de saber onde é que se irão buscar os quadros técnicos diferenciados para garantir os cuidados para as camas e ventiladores, que acreditam poder adquirir e/ou reabilitar em tempo.

Há evidência factual que demonstra haver espaço para existirem hospitais militares, e conveniência! Só a miopia política pode explicar que dirigentes de um país pobre destruam deliberadamente os recursos escassos de que dispõem. Foi o que fizeram sucessivos governos da República ao SSM e aos seus hospitais. Para além de servirem os militares, em tempo de paz, podiam estar à disposição do SNS através de parcerias, colmatando as faltas de capacidade daquele. Nunca houve sageza para utilizar a sua capacidade sobrante. Todos poderiam ficar a ganhar.

Em tempo de crise ou de guerra, são a reserva de retaguarda que se expande para apoiar a resposta nacional, mas apenas se existirem e estiverem apetrechados. Esperamos que a presente crise possa servir de aprendizagem.

Os hospitais privados, mesmo com o estado de emergência decretado, ou fecharam as portas (por exemplo, o SAMS) ou tentam fazer grandes negócios com a prestação de cuidados. Por outro lado, os trabalhadores dos hospitais públicos, regem a sua atividade pela lei geral do trabalho, o que não acontece com os militares. Devido à condição militar, os militares estão permanentemente disponíveis, pernoitando nas instalações militares se tal for preciso, salvaguardando a família e diminuindo o risco de contágio. Para além de uma mobilidade que garante o seu emprego com rapidez onde, quando e como for preciso.

A desconfiguração do SSM, em doses suaves para doer menos, insere-se no plano mais geral de diminuição da importância das Forças Armadas na sociedade. Há quem defenda, irresponsavelmente, que se deve adaptar o dispositivo militar à redução dos efetivos. Por outras palavras, fechar unidades. Não havendo voluntários desmantelam-se as unidades, e reduzem-se as Forças Armadas à irrelevância. Em particular o Exército.

Numa situação de crise, sem instalações militares ou num avançado estado de deterioração, repetiríamos a triste experiência da Grande Guerra de 1914-1918, em que os soldados se aboletavam nas casas de particulares, porque não havia quartéis para os instalar. A falta de preocupação em precaver situações futuras adversas, não se manifesta apenas na inexistência de uma reserva de medicamentos e equipamentos. É, de uma forma geral, o estado da arte.

Portugal, por exemplo, não tem uma lei de mobilização, que devia ter sido feita há mais de 20 anos. Isso só acontece por demissão dos decisores. Há que exigir responsabilidades a quem pactuou com a retórica da gestão economicista, de vistas curtas, que, como se vê, resulta em deitar dinheiro sobre os problemas em momentos de aperto, sem nunca os resolver.

Sai muito mais barato prever e prevenir. Não estamos onde estamos por negligência. É mais grave. É por negligência dolosa.