Recentemente foram publicados, no Diário da República, dois acórdãos uniformizadores de jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, os quais merecem uma consideração especial pelo legislador pelos efeitos práticos que essas decisões judiciais, dado a sua natureza “normativa”, podem ter na vida social dos cidadãos e das empresas, designadamente, dos bancos.

Estes acórdãos de uniformização jurisprudencial visam garantir a certeza do direito e o princípio da igualdade, evitando que decisões judiciais que envolvam a mesma lei e a mesma questão de direito obtenham dos tribunais colegiais respostas diferentes. O acórdão de uniformização de jurisprudência vale inter partes mas não tem efeito vinculativo extra-processual, sem prejuízo do seu caráter orientador e persuasivo.

Já não se tratando dos velhos assentos, autênticas normas jurídicas que violavam, por causa disso, o princípio constitucional de separação dos poderes legislativo e judicial (e executivo), todavia, os tribunais de 1ª Instância e os da Relação deverão (persuadidos pelo tribunal hierarquicamente superior), para evitar as respostas diferentes à mesma questão de direito, seguir essa orientação.

Vejamos então do que versam tais acórdãos do STJ: o primeiro sustenta que, numa venda judicial (num processo de insolvência) de um dado imóvel, deve manter-se a validade – e a eficácia – dos contratos de arrendamento celebrados após a constituição da hipoteca, independentemente do conteúdo ou equilíbrio prestacional do contrato de arrendamento em causa; o segundo, sustenta que numa insolvência, uma resolução unilateral dos contratos promessa de compra e venda pelo Administrador de Insolvência é lícita e o promitente comprador terá apenas o direito de reclamar o crédito à restituição do sinal em singelo prestado (e não o dobro, como é regra em caso de incumprimento) como qualquer credor comum ou garantido (se lhe tiver sido atribuída a posse do imóvel e gozar do direito de retenção do mesmo) sobre as forças do património do insolvente (fraca garantia patrimonial!).

Ora, tais arestos revestem-se de importância fundamental pelos seus efeitos práticos na economia da vida dos cidadãos, das empresas e dos bancos.

No primeiro caso, os bancos, ou outros credores hipotecários, verão a sua carteira de créditos hipotecários em incumprimentos desvalorizar-se dramaticamente, pois nada impede que um devedor relapso celebre, na vigência da hipoteca um contrato de arrendamento, por um prazo longo, mediante uma renda negligenciável a um “amigo”. Este contrato de arrendamento é válido ou, pelo menos, os tribunais sentir-se-ão persuadidos a considerá-los válidos e a perdurarem para além da venda judicial. E numa venda judicial, o valor pelo qual tais imóveis serão arrematados para satisfazer o interesse do credor será muito inferior ao valor de mercado da garantia real.

No segundo caso, gera-se um incentivo injusto para que o administrador de insolvência resolva automaticamente todos os contratos promessa de compra e venda de imóveis celebrados e  não concluídos, pois que os imóveis permanecem no activo do insolvente e os sinais e princípios de pagamento convertem-se em meros créditos, a concorrer com todos os outros créditos (fornecedores, Estado, banca, demais prestadores de serviços e trabalhadores…) sobre o património da insolvente que, não raras vezes, pouco vale. Acresce que as dívidas da massa insolvente, aquelas que nascem após a declaração de insolvência são pagas prioritariamente aos credores graduados. Numa palavra, os sinais nunca serão restituídos.

Isto, que até pode parecer, prima facie, justo, pois coloca todos credores em plano de igualdade face às forças patrimoniais do insolvente, coloca uma enorme insegurança no mercado imobiliário, pois que, doravante, os promitentes compradores enfrentarão sempre a incerteza inerente ao risco sério de perda do sinal e dos reforços do sinal efectuados até à celebração do contrato prometido (e se se tratar de um imóvel em planta esse risco agravar-se-á).

A liquidez do mercado imobiliário decrescerá significativamente, pois que qualquer promitente comprador avisado exigirá uma garantia bancária que cubra o risco de perda do sinal no caso de insolvência ou não celebrará qualquer contrato promessa…

A insensibilidade para os riscos práticos que parece caracterizar os Senhores Juízes Conselheiros pode, e deve, ser remediada pela via legislativa, aprovando uma lei, ora fazendo caducar os contratos de arrendamento celebrados na constância de uma hipoteca executada, aliás, à semelhança do que já hoje acontece aos direitos reais menores posteriores à hipoteca que incindem sobre o imóvel executado e vendido judicialmente, permitindo a quem compra um imóvel numa venda judicial adquirir um bem livre de quaisquer ónus e encargos e devoluto de pessoas, ora aprovando uma lei que impeça o Administrador de Insolvência de resolver qualquer contrato-promessa sobre imóvel, contanto o sinal represente um montante relevante e não seja meramente simbólico (talvez exigir uma antecipação do  cumprimento do contrato prometido seja mais justo…).

Tanto faz, para o património do insolvente, ter o imóvel no seu activo, como o seu valor em dinheiro a receber (ou já recebido parcialmente) pelo promitente comprador.

Isto não é violar o princípio da separação dos poderes de Montesquieu, pois é precisamente o carácter “normativo” dos tais acórdãos que exige uma intervenção do estado: legislar sobre os casos em apreço, mas desta feita atendendo aos reais interesses em jogo. Era o que eu faria…

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.