Um casal vive num T3 e tem direito a um quarto partilhado com dois outros casais, sendo a cozinha e uma casa de banho as áreas comuns. Um estudante aceita partilhar casa com estranhos e já vai na terceira casa em apenas um ano e meio. A privacidade tornou-se restrita a uma pequena área,  o quarto onde as pessoas podem respirar um pouco melhor e ser elas próprias. Um casal separado evita o divórcio dormindo em quartos diferentes e levando vidas distintas, porque não se podem dar ao luxo de viver em casas separadas.

O que todas estas pessoas partilham é o desejo de poder usufruir de um espaço que seja só seu, vital para o seu bem-estar e saúde mental

O que acontece quando a vida em conjunto (seja em casal ou com amigos) se torna uma escolha forçada e a única alternativa? O que acontece quando escolhemos, de forma constante, abdicar da nossa privacidade? Ou quando já não desejamos partilhar a vida com uma determinada pessoa, mas estamos limitados pelas condições financeiras? Ou ainda quando a solução para a crise da habitação passa por partilhar obrigatoriamente o nosso espaço privado com alguém, qual o impacto nas nossas relações?

Muitos de nós seguimos o caminho de encontrar um companheiro/a, comprar  casa, ter filhos, envelhecer em família. É uma escolha como qualquer outra. Até na política a linguagem convencionalmente mais usada pelos partidos é direcionada para “as famílias”, pois elas ainda são o núcleo esmagador que forma a base da nossa sociedade.

Felizmente, os tempos mudam e mudam-se as mentalidades. As famílias adotaram uma natureza mais diversificada, especialmente nas cidades, o que nos forçou a abandonar velhos preconceitos e julgamentos. E há pessoas que escolhem viver sozinhas, sem quaisquer vantagens fiscais. A ideia da solidão, que durante muito tempo era encarada como fracasso pessoal aos olhos dos outros, tornou-se agora um luxo e um privilégio entre os jovens adultos. Isto apesar de escolha ser cada vez mais difícil.

O artigo que recentemente saiu no jornal “Público” – Para quem mora sozinho, a vida é cada vez mais pesada” – fala de uma realidade um pouco ausente das discussões, como se já não fosse permitido considerar essa hipótese face à crise de habitação. Refere o facto de não haver apoios ou subsídios para pessoas que vivem sozinhas. E não uso o termo “solteiros” porque o facto dessas pessoas  viverem sozinhas não significa que não estejam numa relação.

O mínimo que se pode dizer é que a relação do ser humano com a solidão é bastante complexa. No mundo contemporâneo sentimo-nos sozinhos no meio de uma multidão, mas também podemos estar sozinhos num dado local sem nos sentirmos solitários. E há também a diferença de perceção em relação ao género. Normalizamos muito mais um homem a viver sozinho, mas adotamos uma atitude diferente perante uma mulher na mesma situação, como se saísse da “regra”.

É inevitável sentir a pressão de procurar, de alguma forma, preencher de forma sistemática esse vazio, sem termos o cuidado de o avaliar primeiro. Fomos ensinados a temer a solidão, desconhecendo o seu potencial para nos assegurar equilíbrio em momentos difíceis.

Ironicamente, passou a ser considerada um luxo nos dias que correm. A crise da habitação é verdadeiramente uma crise a muitos níveis, mas a impossibilidade de escolher a privacidade é um dos maiores danos que infligimos à nossa saúde mental. Num mundo cheio de ruído e turbulência, precisamos, mais do que nunca, do silêncio para nos descobrirmos a nós próprios.