A lama acumula-se à entrada de um dos estabelecimentos comerciais na baixa de Algés, uma cave com móveis à venda. Está alagada na escuridão e só se vê a água suja a infiltrar-se por todo o lado, arruinando toda a mercadoria. A sujidade nas ruas é impressionante após a passagem das águas. Parte da esplanada do mercado não resistiu à intempérie. Ao lado do mercado, homens amontoam-se à entrada de dois restaurantes tradicionais do bairro e falam da tragédia da noite anterior, nessa mesma rua, da senhora idosa que morreu afogada na cave onde vivia com o marido.

Na rua da linha do elétrico, a devastação não é menor. Nos parques de estacionamento há carros danificados ou fora do sítio, desviados pela força das águas. A proteção civil tem bombas e mangueiras à porta de lojas a drenar a água de caves para o exterior, sacos de lixo pretos acumulam-se nas ruas repletos de bens danificados destinados para venda no Natal, bens que já não serão comercializados, mas depositados no lixo ao lado de tantas outras mercadorias inutilizadas.

Da primeira vez que ocorreram as cheias, ninguém estava preparado para a noite que aí vinha. Os restaurantes continuaram a servir até já não ser possível ignorar a intensidade das chuvas. O túnel da estação de comboio  transformou-se numa gruta inundada. Tudo veio sem aviso e num crescendo que fez a ribeira transbordar, deixando os moradores em choque. Ninguém tinha memória de cheias tão violentas.

No dia seguinte, uma comunidade traumatizada tenta recuperar o ânimo por  entre lama, sirenes e sacos de areia. A chuva  não dá tréguas. O centro de saúde, inaugurado há cerca de cinco anos, foi construído, contra todo o bom-senso, sobre uma ribeira, e tem estado encerrado com garagens totalmente inundadas. Não faltaram bombeiros e polícia, seguradoras e políticos nos dias seguintes, todos a tentarem acalmar a população.

Aquilo que foi um fenómeno descrito como raro e centenário, repetiu-se na semana seguinte com ainda mais força. A ribeira transbordou de novo, a avenida transformou-se num rio, a água galgou ruas e passeios e não deixou uma única esquina seca. As sirenes tocaram de madrugada, alertando a população depois de horas de dilúvio. Os vizinhos observavam nervosos nas varandas a água a flutuar em torno dos prédios. Foi uma noite longa e amanheceu com avisos para não sairmos de casa. Confinados de novo, por tempo breve, até a Mãe Natureza repor o equilíbrio.

Mas o equilíbrio desvaneceu-se. Têm sido semanas sucessivas de chuva que satura os solos já excessivamente impermeabilizados. Temos falhado monstruosamente na gestão e ordenamento do território e é incompreensível como, apesar de todas as evidências científicas, continuamos a ignorar os alertas contra a construção excessiva na linha costeira.

Li um plano do município de Lisboa de 2017, de combate e adaptação às alterações climáticas, e as previsões e soluções já lá estavam todas. Então porque não foram já implementadas? Porque é que a Proteção Civil ignorou os avisos e não encarou com suficiente seriedade as previsões de 7 de dezembro?

Não basta agora que autarcas e Governo compensem os moradores dos concelhos mais afetados, ainda mais se a tragédia se voltar a repetir todos os anos. O presente rumo é insustentável. Ou começamos a adaptar urgentemente as nossas cidades para os fenómenos climáticos extremos ou não teremos, num futuro próximo, cidades que possam ser habitadas. E isso será mais cedo do que julgamos.