Tornou-se antiquado mudar regimes através de golpes militares. Essa prática foi substituída por técnicas mais “modernas”, como as “revoluções coloridas” levadas a cabo em vários países do antigo espaço soviético, inspiradas na teoria da ação não violenta de Geene Sharp, ou como a Lawfare.
Das várias revoluções coloridas, duas tiveram lugar na Ucrânia (2004 e 2014) e uma na Geórgia (2003), derrubando governos democraticamente eleitos. Eduard Shevardnadze, eleito presidente da Geórgia em 1995 e em 2000, foi afastado através de uma revolução colorida, que colocou Mikheil Saakashvili no poder. Tanto num caso como no outro sabemos quem as financiou e instigou.
Os poderes instaurados através destas manobras sediciosas acabam por ser, mais tarde ou mais cedo, afastados eleitoralmente, sendo necessário promover novas “revoluções” para reinstalar proxies. Foi o que aconteceu em 2014, na Ucrânia, e se ensaiou o ano passado e este ano, em Tbilisi, onde se encontra em curso uma nova tentativa, tendo como leitmotiv a contestação à lei “Sobre a Transparência da Influência Estrangeira”.
Em 2012, o estratega do golpe que afastou Shevardnadze foi derrotado eleitoralmente por Bidzina Ivanishvili, líder o partido “Sonho Georgiano” (SG). Desde então, o SG tem ganho com grande vantagem todas as eleições legislativas.
Depois de avanços e recuos, a referida lei foi aprovada em maio de 2024, após um veto presidencial. A larga maioria parlamentar do SG permitiu anular esse contratempo – eram necessários 76 votos, o SG controla 84 lugares. Não obstante a democraticidade do processo legislativo georgiano, mereceu a condenação da Comissão Europeia (CE) e dos EUA. Sem explicar porquê, a CE argumenta que “a adoção da lei sobre agentes estrangeiros será um obstáculo no caminho da Geórgia para a UE.” Não se percebe como é que o pleno funcionamento das instituições democráticas pode minar o desejo da Geórgia aderir à União Europeia (UE). Deveria ser o oposto.
Enquanto decorriam os debates no parlamento, os ministros dos Negócios Estrangeiros dos Estados bálticos, da Islândia e o presidente da comissão parlamentar de assuntos exteriores do Bundestag, numa inaceitável ingerência nos assuntos internos da Geórgia, encabeçaram uma manifestação de estudantes até ao parlamento, em protesto contra a lei sobre os agentes estrangeiros. Paradoxalmente, vimos agentes estrangeiros a contestarem a aprovação por um parlamento democraticamente eleito de um projeto de lei dedicado à “transparência sobre a influência estrangeira”, que pejorativamente apelidaram de “lei russa”.
Tivessem dirigentes georgianos feito o mesmo na Alemanha ou em qualquer país báltico zeloso da sua soberania e teriam sido detidos e enviados de volta ao seu país. Não será difícil imaginar qual seria a reação de um qualquer país da CE, se o presidente da comissão de relações exteriores da Duma ou o ministro russo dos Negócios Estrangeiros reciprocasse e encabeçasse uma manifestação numa qualquer capital europeia. O que parece inaceitável nuns sítios, parece aceitável noutros.
Mais de 60 países por todo o mundo adotaram leis sobre agentes estrangeiros, nomeadamente as democracias ocidentais, muito semelhantes e nalguns casos mais exigentes do que a georgiana. Os EUA, que estão por detrás destas ações desestabilizadoras, aprovaram em 1938 a Lei de Registo de Agentes Estrangeiros (FARA). A própria UE adotou, em dezembro de 2023, legislação sobre agentes estrangeiros, o designado “Pacote de Defesa da Democracia”, nalguns aspetos mais rigorosa do que a lei americana.
A lei russa sobre agentes estrangeiros – aprovada em 2012 e modificada em 2019 e 2021 – foi determinante para pôr fim às ONG financiadas pelos EUA, Reino Unido e UE que, segundo o governo russo, ao serviço de interesses estrangeiros, desempenharam durante mais de duas décadas um papel sedicioso, procurando minar a confiança dos cidadãos no governo, promovendo a chamada oposição política, dando-lhe dinheiro e instruções.
A lei aprovada pelo parlamento georgiano pretende tornar transparente o financiamento das ONG, procurando prevenir a interferência estrangeira em assuntos de política interna do Estado georgiano. Por isso, exige que as ONG declarem as suas fontes de financiamento. Quando mais de 20 por cento do seu orçamento for proveniente de fontes estrangeiras devem registar-se como agentes estrangeiros. Em benefício da transparência, têm de declarar a origem do dinheiro.
Segundo Nikoloz Kharadze, presidente da Comissão de Assuntos Exteriores do parlamento georgiano, “há cerca de 25 mil ONG ativas na Geórgia, 90% das quais recebem fundos do estrangeiro. Com esta lei, os georgianos poderão ficar a saber quais das 25 mil ONG são totalmente financiadas por governos estrangeiros hostis”. Num país cuja população não atinge os quatro milhões de habitantes, haverá cerca de uma ONG por cada 160 cidadãos, sem se saber de onde vem o dinheiro para sobreviverem.
Ainda com a lei em discussão, o primeiro-ministro da Geórgia Irakli Kobakhidze afirmou que “o projeto de lei tem como principal objetivo proteger a Geórgia da ‘ucranização’, reforçar a soberania e assegurar o desenvolvimento estável [do país], uma condição necessária para a integração da Geórgia na União Europeia. Evitar a ‘ucranização’ é uma condição necessária para a integração da Geórgia na União Europeia, e este é o principal objetivo deste projeto de lei”.
Os verdadeiros motivos destes grupos industriados e pagos para derrubarem o governo não têm nada a ver com os argumentos avançados pela UE, mas sim com o facto da Geórgia não ter cedido a pressões para abrir uma nova frente militar contra a Rússia. De salientar que o presente governo continua a definir como principais objetivos da sua política externa a adesão à UE e a cooperação com a NATO. Mas isso parece não chegar. O que é mesmo necessário é uma política de intensa hostilidade à Rússia.
É fácil compreender o motivo de um país com 3,7 milhões de habitantes, uma larga fronteira com a Rússia, dependente economicamente de Moscovo e localizado no Cáucaso do Sul, uma zona de extrema importância geoestratégica para a Rússia, pretender desenvolver uma política acomodatícia com o Kremlin, que nunca permitirá a instalação de bases militares pertencentes a potências hostis em território georgiano.
Antecipando o que seria uma política de confrontação com Moscovo, para onde é insistentemente empurrada por Bruxelas e Washington, Kobakhidze disse que, “hoje, a Ucrânia está em ruínas. É o resultado de Maidan, isto não acontecerá na Geórgia”.
Por seu lado, procurando interpretar a vontade popular georgiana, Washington mostrou uma “profunda preocupação com as ações antidemocráticas do SG, bem como com as suas recentes declarações e retórica”, dizendo que “estas ações podem comprometer o futuro europeu da Geórgia e são contrárias à Constituição da Geórgia e aos desejos do seu povo.”
Numa ameaça velada, o Porta-voz do Departamento de Estado Matthew Miller assinalou que “o Governo da Geórgia ainda tem tempo para voltar atrás. Não se trata apenas da lei recentemente aprovada, mas também das declarações que estão a fazer ao rejeitarem o caminho que têm vindo a percorrer há tanto tempo.”
O Secretário de Estado Antony Blinken anunciou recentemente uma revisão global de toda a cooperação bilateral dos EUA com a Geórgia. “Hoje, como parte desta política, estamos a tomar medidas para introduzir restrições de vistos a dezenas de cidadãos georgianos, incluindo funcionários e membros das suas famílias.” Não deixa de ser insólito Blinken anunciar uma nova política de imposição de restrições de vistos à Geórgia com base na Lei norte-americana dos agentes estrangeiros. A resposta de Tbilisi foi clara: “a independência nacional não está à venda por um visto de viagem.”
A sequência de acontecimentos rocambolescos relacionados com a aprovação desta lei não tem fim. A presidente da Geórgia, Salome Zurabishvili, também com a nacionalidade francesa, e ex-diplomata francesa, ela própria acusada de ter recebido avultadas quantias do exterior, não só vetou a lei como apelou ao presidente francês Emmanuel Macron para intervir nos assuntos internos da Geórgia. No dia 27 de março de 2024, o Senado francês aprovou uma lei para combater a interferência estrangeira, e em 23 de maio de 2024 veio dizer “que a lei georgiana de ‘influência estrangeira’ é incompatível com os valores da UE”.
Por outro lado, Kobakhidze veio dizer publicamente ter sido ameaçado de morte pelo comissário europeu Olivér Várhelyi por causa da sua lei “pró-russa” relativa aos agentes estrangeiros. O primeiro-ministro georgiano afirmou que Várhelyi o “intimidou” ao citar a tentativa de assassinato de [Robert] Fico [primeiro-ministro eslovaco]. Várhelyi confirmou o conteúdo da conversa, dizendo terem sido as suas palavras descontextualizadas, o que se faz sempre quando diz o que não devia ter sido dito.
Os desenvolvimentos narrados com a aprovação da lei georgiana sobre os agentes estrangeiros mostram alguns factos profundamente desagradáveis, como seja a infinita falta de pudor dos dirigentes ocidentais. Estes comportamentos não são compagináveis com a retórica da Ordem baseada em regras. Para os amigos tudo, para os outros a lei. Não tem precedente sancionar deputados legitimamente eleitos pelo povo por adotarem uma lei sem qualquer impacto fora do seu território.
O Sul Global não estará desatento a estes acontecimentos e à arrogância que os suporta. A autoridade moral do Ocidente está a esboroar-se. Não bastava a condescendência com os acontecimentos na Palestina. Estes eventos mostram uma Europa sem autonomia e completamente subserviente e manietada a interesses que não são os seus, que a dividem e corroem.
Washington parece não perceber que o mundo está a mudar. É tremenda a falta de habilidade em lidar com o assunto, empurrando Tbilisi para o colo de Moscovo. A persuasão poderá produzir mais efeitos do que a coação. Afinal, não é com vinagre que se apanham moscas.