Já aqui discutimos a evolução esperada para o direito de propriedade quando tokenizado na Blockchain. Pois bem, dois anos passados, a Europa começa a dar cartas no Ocidente (nota: vamos deixar a comparação com a China para outra reflexão).
Curiosamente, foram os EUA a tomar a dianteira no já longínquo ano de 2018, quando o estado de Delaware regulou a tokenização de acções. Foi um passo interessante, pois até deu origem ao standard ERC-884 (nota: ERC significa Ethereum Request for Comments). Nesta especificação, os detentores das acções tokenizadas podem passar a beneficiar de mercados secundários extremamente eficientes dada a conveniência proporcionada pela auto-execução ecossistémica da Blockchain.
Porém, é uma especificação que ainda obriga à custódia de uma lista de entidades certificadas e autorizadas a participar nas transacções; e tal significa que o registo de propriedade continua centralizado fora da Blockchain como até aqui.
Na Europa, foi a Suíça que se antecipou em Dezembro de 2021 com o “DLT Act”, uma evolução significativa na gestão dos direitos de propriedade dos instrumentos financeiros, incluindo os derivados. A título de exemplo, as primeiras acções já foram tokenizadas em Julho de 2022. Esta é uma legislação agnóstica quanto à tecnologia subjacente, mas ainda centralizada, pois a responsabilidade pela garantia da lei passa por guardiões devidamente licenciados.
No entanto, ao contrário do que é preconizado pelo estado de Delaware, a informação sobre os detentores dos direitos pode estar registada na Blockchain, o que irá permitir a auto-execução dos direitos subjacentes, algo que na União Europeia (UE) ainda estamos longe de vir a permitir.
Na UE, o regulamento Pilot DLT foi aprovado em Março de 2022 e vai ser aplicado já em Março próximo. É uma legislação para a tokenização do direito de propriedade de acções, obrigações e fundos. Mas afinal qual a vantagem de tokenizar o registo de propriedade quando este ainda é gerido de forma ainda centralizada em todos os casos?
Em primeiro lugar, convém lembrar que os ordenamentos jurídicos actuais ainda não estão preparados para abarcar a auto-execução ecossistémica na sua plenitude. Sabemos que tal vai acontecer, assim como também sabemos que, um dia, existirão Smart Contract com o valor de contratos juridicamente aceites (tal como já discutimos aqui). Mas até esse dia chegar, vamos ter de passar obrigatoriamente pela centralização como forma de reconhecer legalmente o direito de propriedade.
Apesar da limitação resultante da dificuldade em fazer evoluir a legislação à velocidade da tecnologia, a vantagem destas primeiras formas de tokenização de activos na economia incumbente está na simplificação dramática dos circuitos financeiros e na extrema conveniência dos novos mercados secundários, o que por si só significa uma redução extraordinária dos custos de transacção para os activos abrangidos.
Na Blockchain, as acções vão estar representadas directamente nas wallet dos consumidores e, para que as transacções possam ter lugar, apenas precisamos de uma entidade centralizada intermédia que reconheça e registe as pessoas jurídicas parte dessas mesmas transacções. Além disso, a preparação, verificação e execução das transacções são realizadas no mesmo momento e pelo mesmo sistema, não demorando vários dias a cruzar os sistemas de várias entidades como acontece hoje.
Portanto, a tokenização incrementa a conveniência e a rapidez das transacções em várias ordens de grandeza, abrindo também caminho à diminuição das taxas a uma fracção do que é hoje cobrado. Imagine-se, por exemplo, a tokenização das acções de uma empresa que detém activos reais, tais como bens imóveis. Com o Pilot DLT, nada impedirá a negociação desses activos reais em mercados secundários a beneficiar das referidas vantagens.
A redução de custos de transacção que se acabou de referir vai ter como resultado uma imensa inovação nos modelos de negócio. Afinal, foi assim que a própria web/internet se tornou disruptiva, quer para a oferta, quer para a procura.
O Pilot DLT é apenas o primeiríssimo passo na tokenização dos direitos de propriedade na economia incumbente. Seguir-se-ão os outros instrumentos financeiros do MiFID II, mas, para que a sua tokenização seja eficaz, deveremos pensar na forma de registar a identificação jurídica também na Blockchain. Este será um passo importante para que, um dia, o direito de propriedade (Res Incorporales) venha a ser possível sem necessidade de custódia da sua informação (Res Digitales).
Está agora na mão dos reguladores fazer aplicar o Pilot DLT com eficácia ainda este ano. Lembremo-nos de que este é um regulamento aplicado no contexto do passaporte europeu dos serviços financeiros. Portanto, está na nossa mão ganharmos vantagens competitivas com esta tremenda oportunidade, não esquecendo que, se nada fizermos, as oportunidades depressa se transformam em ameaças. Apetece dizer: vamos a isto?
O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.