Nos últimos dias a Europa defrontou-se com a iminência de ter de voltar a lidar com uma nova onda de refugiados, replicando o sucedido há cerca de 5 anos, e que gerou uma situação ainda longe de completamente resolvida ou absorvida. Uma das formas na altura encontrada para tentar resolver o desafio da imensa movimentação de seres humanos ao longo de algumas fronteiras externas da União Europeia, recorde-se, passou pela assina­tura, em 2016, de um acordo com a Turquia a qual, a troco de uns milhares de milhões de euros pagos pela UE, se comprometeu a reter no seu território a esmagadora maioria dos refugiados que atravessavam o seu território, maioritariamente provenientes da Síria. Na altura, tal acordo foi genericamente criticado e considerado como uma verdadeira traição europeia aos seus valores humanistas e personalistas e à sua vinculação à defesa dos di­reitos humanos.

Quatro anos volvidos sobre a assinatura desse malfadado acordo euro-turco, comprova­ram-se os piores receios tecidos pela generalidade dos analistas que se pronunciaram so­bre o mesmo – essencialmente a Europa da União dedicou-se a pagar a Ancara vultuosas quantias financeiras aplicadas na construção de campos de refugiados no seu território, caracterizados por condições infra-humanas para os cerca de três milhões de refugiados migrantes que os povoam. Há cerca de uma semana, na sequência de uma inquestionável derrota militar que lhe foi infligida pelo exército sírio leal a Hassad apoiado pelos milita­res russos de Putin, a Turquia, que peleia por parte do território sírio, resolveu retaliar esse insucesso militar apresentando a respetiva fatura à União Europeia. Assim, numa flagrante violação do referido acordo de 2016, o governo de Erdogan decidiu encaminhar os refugiados instalados nos campos existentes no seu território para o território da União Europeia, principalmente através da sua fronteira com a Grécia. De um momento para o outro, a somar aos seus conhecidos problemas económicos e sociais, Atenas viu-se com uma pressão de mais de 40.000 refugiados nas suas fronteiras. Para conter esta pressão suplementar e inesperada, o governo grego viu-se na contingência de ter de mobilizar parte significativa das suas forças policiais e militares que chegaram a estar frente-a-frente com as forças de segurança turcas. De permeio, as dezenas de milhar de refugiados que se viam empurradas por turcos e sustidas por gregos.

No meio deste clima de tensão e desta escalada de ameaça, três notas não podem deixar de ficar registadas.

Em primeiro lugar e uma vez mais, a praticamente inexistente capacidade de resposta da União Europeia através do Frontex para mobilizar os meios necessários a conter esta nova vaga de refugiados na qual seguramente encontraremos as mais diversas categorias – cri­anças, mulheres, adultos, terroristas…. Parece nada ter sido aprendido com a crise de 2015, pelo menos em termos de medidas preventivas. Todas as fichas foram apostadas na honradez de Erdogan e na palavra do governo turco. Os resultados estão aí à vista de todos.

Em segundo lugar, a tensão grego-turca corre o risco de se volver num foco de tensão euro-turco, arrastando para o conflito a generalidade dos Estados da União Europeia. Com a agravante de que tanto a Turquia como a esmagadora maioria dos Estados-membros da União Europeia não deixam de ser aliados e parceiros no quadro da Aliança Atlântica. Ou seja, o clima de conflitualidade que está patente tem ainda a nefasta virtualidade de poder volver-se numa grave fratura no quadro do bloco político-militar ocidental, com todas as consequências que facilmente se adivinham e se perspetivam.

Em terceiro lugar e finalmente – uma leitura mais fina da situação resultante desta esca­lada de tensão leva-nos a concluir que dificilmente a Turquia avançaria para uma posição como aquela que vem adotando nos tempos mais recentes – seja na guerra síria onde não esconde ambições de expansão territorial típica de uma potência regional, seja no seu combate ao sacrificado e martirizado povo curdo, seja no desafio lançado à Grécia e à própria União Europeia no seu conjunto – sem ter, no mínimo, se não o apoio, pelo menos a complacência ou a aquiescência do aliado norte-americano. Ora, a assim ser, estaríamos colocados ante uma situação de gravidade incomensuravelmente maior do que aquela que pode resultar da escalada de tensão euro-turca. Num tal cenário, que não pode ser dado por descartado de forma liminar, isso significaria que a possível e eventual fratura no quadro do bloco político-militar ocidental a que aludimos, corre o risco de ser muito mais profunda e muito mais grave do que, à partida, se poderia supor e antecipar.

Considerando as três notas acabadas de expor sinteticamente, de todas ela emerge uma conclusão óbvia – nos limites da sua fronteira externa, a União Europeia tem hoje que se defrontar com um Estado – a Turquia – cada vez menos fiável, cada vez menos confiável, cada vez menos respeitador dos princípio do Estado de direito democrático, cada vez mais violador das regras essenciais dos direitos humanos, cada vez menos democrático. Um Estado cada vez mais anti-europeu e cada vez mais islamizado. Mas, em contrapartida e felizmente, um Estado que se coloca a si mesmo cada vez mais distante e cada vez mais longínquo do sonho que em tempos terá sido seu de pertencer de pleno direito à Europa da União. Neste caso não é Roma que não paga a traidores; tem de ser Bruxelas que não pode continuar a pagar a Ancara.