Apesar das cinco décadas de regime democrático estarem a aproximar-se, continua a ser importante repetir até à exaustão: Portugal é um país demasiado centralizado. As reformas parcelares e pontuais têm sido muito pouco expressivas e não têm acompanhado a tendência europeia, mesmo a dos países que muito mais tarde introduziram nas suas constituições a autonomia local, após décadas de regimes não democráticos.

Temos assistido a um processo tímido, desarticulado e incompleto. A descentralização obriga a considerar muitos aspetos para além da evidente e mais comum transferência de competências. Mas muito pouco tem sido feito para além disso. Descentralizar implica, claro, mais poderes em níveis de governação subnacional, mas estes devem ser acompanhados das capacidades organizacionais, técnicas, políticas, humanas e financeiras, de acordo com as competências recebidas. Para além disso, importa considerar a possibilidade – diria necessidade – de diferenciar as funções de governação, adequando-as às realidades territoriais, económicas, sociais e demográficas.

Importa também descomplexificar a relação entre níveis de governação, clarificando funções, competências e territórios de atuação. Não é, de todo, claro para os cidadãos e as cidadãs o que faz cada nível de governação, ou cada entidade com competências na administração do território. Parece também evidente que acresce a necessidade de democratizar, criando mecanismos de responsabilização e de legitimação dos órgãos de decisão com responsabilidades sobre as competências e poderes atribuídos. Estamos ainda muito longe desta visão integrada que um verdadeiro processo de descentralização exige.

Ouvimos, demasiadas vezes, o argumento de que Portugal é um país pequeno e com demasiados municípios. Trata-se de um erro que, esse sim repetido à exaustão, se tem tornado um obstáculo importante a verdadeiras reformas descentralizadoras. É interessante verificar que, quer se considere a população total nacional, quer o valor médio de habitantes por município, Portugal deveria estar incluído no grupo de países com dois níveis de governação subnacional, ou seja, com estruturas de tipo regional.

Considerá-las desnecessárias seria o mesmo que dizer que países como a Áustria, a Dinamarca, os Países Baixos, a República Checa ou a Suécia não precisam da organização regional que atualmente possuem. Com cerca de 34.000 habitantes por município, estamos bem longe da média municipal dos países do Conselho da Europa (8 mil), ou mesmo da União Europeia, com 28 mil. E não há nenhum destes países, com os quais nos podemos comparar em termos de dimensão territorial e populacional, que não tenha um nível intermédio (regional) de governação.

Outro argumento comum é o de que a descentralização iria promover a proliferação de fenómenos de corrupção e caciquismo. No entanto, o nosso principal problema é o da indefinição e falta de transparência. Por exemplo, se não se avança com a regionalização, importa urgentemente legitimar as estruturas existentes, cuja intervenção nas políticas públicas tem já um elevado carácter discricionário, mas que estão significativamente afastadas do conhecimento, do olhar e da informação dos cidadãos e das cidadãs. Uma regionalização disfarçada é mais promotora de caciquismo, pela ausência de clareza e transparência nos processos e nas estruturas já existentes, do que uma verdadeira descentralização.

O exemplo urgente da sustentabilidade ambiental

Um bom exemplo da urgência da descentralização pode ser dado através das políticas de sustentabilidade ambiental. Existe um acordo generalizado sobre o papel dos governos locais na garantia de um futuro sustentável. As autoridades e líderes locais estão a assumir, cada vez mais, o palco central neste combate e a ser convocados a desempenhar um papel principal em vários dos desafios mais relevantes da sustentabilidade ambiental. O conhecimento, a inovação e as soluções relacionadas com a sustentabilidade global requerem uma perspetiva local, ação de proximidade, envolvimento das comunidades e uma mudança de políticas baseada nas realidades locais. As escalas territoriais são fundamentais para qualquer política integrada de gestão ambiental.

No entanto, em Portugal, alguns dos limites a esta atuação estão precisamente identificados como consequência direta da sua excessiva centralização. Apesar da retórica sobre a importância do poder local nesta matéria, há poucas provas de mudanças objetivas e tangíveis, com a devida exceção que resulta da iniciativa de alguns municípios. No entanto, isto não deveria depender da vontade política. Sem uma abordagem mais sistémica da governação subnacional, os agentes locais estarão longe de implementar políticas de alto impacto para sociedades humanas sustentáveis: as autoridades locais podem tentar fazer o seu melhor, mas ainda assim, com outra autonomia, capacidade e instrumentos, muito mais poderia ser feito.

Apesar do conhecimento científico, das muitas proteções legais, dos acordos ambientais internacionais, e de décadas de difusão de novas ideias no domínio das políticas de sustentabilidade ambiental, observámos uma aceleração dos impactos humanos no planeta e poucas mensagens claras de como enfrentá-las através de uma resolução eficaz dos problemas.

Devemos reconhecer que a experimentação política, institucional e tecnológica precisa de um novo fôlego local. Isto exige, em Portugal, um novo debate sobre a forma como a governação local é verdadeiramente capaz de contribuir para enfrentar estes desafios globais. Embora tenha havido uma mudança significativa trazida por esta atenção global sobre o papel dos governos locais na aplicação dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, as questões de arquitetura de governação em Portugal permanecem as mesmas.

Autonomia, capacidade e articulação multinível são condições fundamentais para que os municípios possam dar um contributo ainda mais efetivo em termos de sustentabilidade ambiental, e tornar a gestão ambiental mais eficaz.

Não há mudança que resulte apenas de retórica. E não há retórica que se transforme em prática, quando os instrumentos, os meios, e a responsabilidade não estão atribuídos. Os incentivos às cadeias curtas de produção, consumo e alimentação, dos mecanismos de compensação e de proteção do capital natural, de valorização e sensibilização, de educação, todos dependem de políticas e gestão de proximidade. De um poder local mais forte. Estamos ainda longe disto.

A governabilidade do território

A governabilidade apresenta enormes desafios. Temos, em Portugal, um modelo complexo de governação, nem sempre com uma distribuição muito clara de competências. Para além das regiões autónomas dos Açores e da Madeira, assistimos a uma “pseudo-autonomia” regional no continente, com as CCDR com mais competências e maior discricionariedade no seu uso, particularmente através da gestão de fundos comunitários. Acrescem as comunidades intermunicipais, as áreas metropolitanas e os governos locais, tanto ao nível municipal quanto ao nível da freguesia.

No meio desta malha, convivem ainda entidades da administração pública desconcentrada e entidades que resultam da agregação de outras, como as associações intermunicipais de fins específicos, arranjos institucionais que decorrem dos incentivos financeiros vindos dos fundos comunitários, grupos de ação local, entidades gestoras de planos de valorização do território, entre muitas outras. Isto gera, necessariamente, uma cidadania confusa. É cada vez mais difícil identificar o lugar da responsabilidade numa determinada decisão política.

Naturalmente, esta malha complexa convoca para a mesa da discussão a necessidade de clarificar competências, mas também de criar os instrumentos que garantam a avaliação de políticas públicas. Mais do que a seleção de áreas de política pública a transferir, dando continuidade ao que tem sido a prática tímida, desarticulada e incompleta de descentralização nas últimas décadas, como se se resumisse a um menu de competências para escolher, importa olhar para a descentralização de forma integrada.

Importa ainda sublinhar que uma reforma descentralizadora obriga a reorganizar também as instituições locais. O poder local português assenta num modelo institucional que originou a criação de uma estrutura de governação excessivamente centrada na presidência da Câmara, com a administração local política e administrativamente dependente do executivo, com os poderes concentrados na presidência e com a subsequente desvalorização dos restantes órgãos, associando às oposições um papel quase simbólico, que desconsidera a representatividade dos órgãos e a democraticidade do processo de decisão.

A natureza e a velocidade da mudança – num país que enfrenta hoje condições substancialmente diferentes das de há mais de quatro décadas – requer um sistema de governo local diferente. Uma forma de governar que ajude a responder aos desafios de hoje: da sustentabilidade ambiental, da coesão territorial, com serviços públicos capazes de atender às expectativas de cidadãos e cidadãs mais exigentes, informados e desafetos dos mecanismos tradicionais de participação, assegurando flexibilidade e eficiência das políticas públicas.

Os poderes político e administrativo são historicamente avessos à dispersão de poder pelo território e detêm uma capacidade incrível de exercer um proselitismo anti-descentralização. A eles junta-se um pensamento centralista dominante, que existe tanto no centro como nas próprias periferias. A descentralização não ocupa um lugar mais cimeiro na agenda pública também por isso. O legislador precisa de ajuda, mas isso só ocorrerá quando este for capaz de reconhecer o poder local e não apenas o local do poder. Andamos sempre demasiado preocupados com este último aspeto.

Filipe Teles assina este texto na qualidade de Autor do ensaio “Descentralização e Poder Local em Portugal”, publicado pela Fundação Francisco Manuel dos Santos