O modelo português da mobilidade elétrica foi aprovado em 2010 tendo tido a sua última revisão no distante ano de 2014.
Ao longo destes nove anos, nos quais se verificou um enorme crescimento do setor da mobilidade elétrica – tanto do ponto de vista do número de utilizadores de veículos elétricos (UVE), com um aumento considerável da oferta do lado do setor automóvel, como do ponto de vista dos pontos de carregamento, assistimos a inúmeras e importantes reformas no sistema elétrico (v.g. licenciamento da produção renovável, hibridização, reequipamento, sobre-equipamento, autoconsumo coletivo, comunidades de energia, armazenamento, etc.), ao qual o sistema de mobilidade elétrica está intrinsecamente ligado, que não foram minimamente acompanhadas por reformas neste último setor.
A complementaridade do sistema de mobilidade elétrica ao setor elétrico é uma inevitabilidade tendo em conta a função de armazenamento de energia que as baterias dos veículos elétricos podem desempenhar.
Veja-se, por exemplo, a Proposta de Regulamento do Parlamento Europeu e do Conselho relativo à criação de uma infraestrutura para combustíveis alternativos, que consagra conceitos como o de carregamento inteligente segundo o qual a intensidade da eletricidade fornecida à bateria do veículo elétrico é ajustada em tempo real, ou o de carregamento bidirecional, que se traduz numa operação de carregamento inteligente em que a direção do fluxo de eletricidade pode ser invertida, permitindo que a eletricidade flua da bateria para a rede elétrica.
Não há dúvida que estas novas realidades irão trazer com certeza desafios operacionais à gestão das redes de energia, mas também, no fim do dia, trarão vantagens à gestão global do sistema elétrico nacional, devendo as entidades administrativas e os operadores de rede estar preparados para acolhê-las e permitir que sejam implementadas num futuro próximo.
O atual modelo português da mobilidade elétrica, singular na União Europeia (assente em multi-redes privadas), foi, de facto, pioneiro e desenhado numa fase muito embrionária, tendo como elemento diferenciador uma matriz de mono-rede pública de âmbito nacional, estruturando-se em três atividades fundamentais: a operação de pontos de carregamento, a comercialização de eletricidade para a mobilidade elétrica e, por último, a gestão da rede pública de mobilidade elétrica. Este regime centrou-se substancialmente no benefício do sistema para os UVE, ao prever o acesso universal à rede pública, que para poderem aceder a qualquer ponto da rede pública têm “apenas” de celebrar um contrato com um comercializador de eletricidade para a mobilidade elétrica (CEME).
Ora, no regime português, enquanto as atividades de operação de pontos de carregamento e de comercialização de eletricidade para a mobilidade elétrica são desenvolvidas em regime de livre concorrência, a gestão da rede pública de mobilidade elétrica é desempenhada em regime de monopólio pela Mobi.E, S.A. (Mobi.E), uma empresa pública, à qual todos os pontos de carregamento situados em locais privados de acesso público (i.e., exemplificativamente, parques de estacionamento de grandes superfícies comerciais, hotéis, restaurantes, etc., apesar de, também neste tema, o legislador tardar em densificar e estabilizar o conceito de local privado de acesso público) têm obrigatoriamente de estar conectados.
Face a um modelo tão diferente do praticado no resto da Europa, a pergunta da praxe de todos os novos potenciais investidores estrangeiros neste setor é invariavelmente a seguinte: os meus pontos de carregamento têm de estar conectados à rede pública gerida pela Mobi.E e, se sim, porquê?
A obrigatoriedade de ligação à rede pública pode constituir um obstáculo ao aumento do número de pontos de carregamento por parte de operadores que têm interesse em instalar as suas redes privadas, cobrando aos seus utilizadores um preço ad hoc, sem terem de incorporar no preço final a remuneração das outras atividades associadas à rede pública gerida pela Mobi.E, ou seja, a comercialização e a própria tarifa reservada à atividade da Mobi.E.
Na realidade, não obstante o nosso modelo ter sido construído a pensar no utilizador, a verdade é que, no fim do dia, o UVE quer essencialmente, por um lado, ter onde carregar o seu veículo no espaço público, e, por outro lado, fazê-lo ao menor preço possível e sem burocracia associada (aproximando, neste último aspeto, a sua experiência de carregamento do seu veículo elétrico ao abastecimento de um veículo a combustão).
É certo que há operadores em Portugal que já incluem na sua oferta os chamados carregamentos ad hoc, ou seja, em teoria, carregamentos nos quais os UVE carregam o seu veículo num ponto de carregamento da rede sem terem qualquer contrato com um CEME, mas a verdade é que o legislador português não só não faz qualquer referência a esta possibilidade como parece exigir expressamente a contratualização entre um CEME e um UVE.
As questões que referi acima são apenas algumas de muitas outras que poderiam ser enumeradas sobre aspetos da legislação e regulamentação atualmente em vigor que me parece que podem e devem ser melhorados e desenvolvidos.
Considerando o objetivo de incrementar o número de pontos de carregamento de veículos elétricos disponíveis aos UVE e a capilaridade da rede, é inequívoca a urgência da aprovação de uma reforma do modelo português da mobilidade elétrica no sentido de assegurar uma maior flexibilização na atuação dos seus agentes e liberalização num setor onde a inovação e a evolução são uma constante, permitindo modelos de negócio e soluções a apresentar aos UVE distintas das que são consentidas pela moldura legal hoje existente.