As pessoas estão zangadas. Não é fenómeno exclusivamente português, é endémico em todas as partes do mundo. Os poderes que sempre sustentaram os regimes democráticos vão apodrecendo dia após dia. A classe política é o tradicional alvo mais fácil de um desporto muito popular que é o tiro ao boneco.

A máquina da Justiça criou uma percepção pública, dificílima de apagar, de que gere consoante agendas obscuras e tem dois pesos e duas medidas no que toca ao relacionamento com poderosos e humildes, e até a comunicação social anda pelas ruas da amargura, por pecados próprios, permitiu danos reputacionais e hoje os jornalistas precisam de boa imprensa, pois ainda não compreenderam o desdém e desconfiança com que o grosso da comunidade os encara.

Todo este caldo de acumulação de erros, afirmações destemperadas, processos prescritos e julgamentos adiados, comentadores televisivos licenciados em mediocridade, cria um ódio ao sistema, às instituições que deviam ser perpetuamente imutáveis na nossa consideração e respeito.

Quando se fala em populismos e extremismos, é importante apreender que a sua gasolina são as sociedades zangadas, que perdem a moderação, racionalidade e, assim, o seu equilíbrio. A tendência para o amanhã, tal como a classe média que vai desaparecendo, é a dos extremos sugarem o centro e não o contrário que foi o baluarte das democracias ocidentais, do centro dar o abraço do urso que esmaga e tira o tapete aos radicais quando começam a crescer.

Por exemplo, cada espectáculo degradante e caricato em sede de Comissão Parlamentar de Inquérito ou tribunal é mais uma décima em intenções de voto para populistas e mais um fio de azeite para fritar o regime.

Esta semana, estava calendarizado o início do julgamento de Ricardo Salgado na Operação Marquês, mas como era previsível para o comum dos mortais foi adiado. Tudo porque os advogados do banqueiro não entregaram a contestação que pode seguir até dia 11. Andamos nisto há anos até ao destino final que está escrito nas estrelas que é a prescrição de todos os processos onde esteja envolvido o antigo Dono Disto Tudo.

Contudo, ainda mais ridículo, foi o pedido para que “o doutor Ricardo Salgado”, face às vicissitudes da pandemia e à sua idade avançada, não se deslocasse à casa da lei. Então o “doutor Ricardo Salgado”, com 76 anos, ainda não foi vacinado? A sua faixa etária já foi toda inoculada e este “poderoso chefão” que não mora debaixo da ponte nem vai buscar as refeições à Mitra não conseguiu uma vacina? Será negacionista?

Não pode a comunidade pedir encarecidamente ao almirante Gouveia e Melo que envie uma vacina para a Quinta da Marinha para o “doutor Ricardo Salgado” poder ir a tribunal responder por tudo o que é acusado? Ou “o doutor Ricardo Salgado” está apenas a usar um subterfúgio cobarde para fugir com o rabo à seringa?

Dizia uma das actrizes pioneiras de Hollywood, Mary Pickford, “o passado não pode ser mudado, o futuro ainda está em nosso poder”. É tempo de não darmos espaço para o crescimento do populismo e para isso era bom que o “doutor Ricardo Salgado” e tantos outros tomassem pelo menos a vacina da vergonha.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.