Na terça-feira da semana passada, vivemos um momento histórico no nosso Parlamento. O chumbo da legalização da eutanásia constituiu uma vitória de muitíssimo maior alcance do que se possa imaginar. É verdade que os deputados chumbaram os projectos em concreto, mas o que foi reprovado e o que foi revelado vai muito além disso.

Primeiro, de modo corajoso, o PC mostrou sem tibiezas que há um limite para o uso político das questões fracturantes, que tradicionalmente dividem o Parlamento em direita e esquerda; desta vez, pela primeira vez, o Parlamento dividiu-se entre quem não transige na defesa do primado absoluto do valor da vida e quem admite a relativização deste primado em detrimento de uma suposta autonomia individual. Curiosamente, ao quebrar a unidade fracturante à esquerda, com uma declaração de princípios inatacável, e ao sofrer o ataque rasteiro do Bloco, o PC recuperou muito do seu capital que se vinha diluindo na geringonça. O PC recordou a todos que é um partido de regime, respeitador da Constituição e, embora se diga revolucionário, o pilar do conservadorismo à esquerda; enfim, os ingredientes que o preservaram da varridela que fez desaparecer os congéneres europeus.

Do outro lado, de forma desastrada, Rui Rio enveredou por um caminho de afirmação impertinente dos seus pontos de vista, tentando condicionar um grupo parlamentar que, neste caso por plena convicção, o iria desautorizar. As excepções do PSD foram também isso mesmo, casos de convicção pessoal que deixaram Rio a fazer má figura sozinho. Em contrapartida, gerindo bem a liberdade de voto, o grupo parlamentar do PSD conseguiu estar unido no essencial, próximo do que pensará a esmagadora maioria dos seus eleitores, e liderando o debate de forma positiva e propositiva. O CDS, com história bem consolidada na matéria, deixou que o PSD assumisse o exclusivo da batalha dos cuidados paliativos com eficácia, a grande questão que realmente interessa debater e firmar na agenda política.

No PS, foi o expectável. Não houve exageros, seguiram a cartilha de influência jacobina que lhes condiciona o pensamento e acção nestas matérias, mas sem exacerbar posições para lá dos limites aceitáveis. Pérolas, como as de Isabel Moreira, dizendo que a vida nem sempre é um valor absoluto, já não impressionam, ficam no domínio do kitsch parlamentar. Apenas o Bloco, braço armado da geringonça, não se poupou ao terrorismo político, tendo ficado sozinho a chafurdar na lama que levou para o debate.

Curiosamente, ou não, o PS esteve no bloco dos derrotados, tendo Costa escapado de fininho, sem grande derrota pessoal a assinalar. Ao mesmo tempo, tendo o PSD estado por mérito do grupo parlamentar no bloco dos vencedores, Rui Rio conseguiu averbar uma derrota pessoal assinalável.

Mais calmamente, já sem a pressão de uma votação à vista, será altura de reflectir sobre o que realmente se passou. O que vivemos, apesar de todos os sentimentos, princípios, convicções, foi eminentemente político. As grandes questões que enformam a organização social têm de ter uma condução política, dado que tudo o resto lhes é submetido. Será algures por aqui que se situa o voto do constituinte Miranda Calha. Por muito imaginativo que se seja, a eutanásia choca de frente com a Constituição da República Portuguesa e com o princípio fundamental da inviolabilidade da vida humana.

Quando ouvimos repetidamente dizer que a inviolabilidade da vida humana deveria ser relativizada em face do sofrimento, num suposto exercício de afirmação individual, convém não negligenciar a porta que com isto se abriria. Admitindo que é compreensível que se suprima a vida a uma pessoa que se encontra “inviável” e em sofrimento, não será também admissível o mesmo Estado suprimir a vida por outros motivos? Não estará um pai, cuja filha tenha sido assassinada, depois de mutilada e violada, legitimado para exigir que o Estado suprima a vida do perpetrador, ou não poderá o mesmo, em excruciante sofrimento, tratar do assunto pelas próprias mãos? Em caso de escassez alimentar, de escassez de vacinação face a uma epidemia mortal, não seria de equacionar a eliminação dos não elegíveis, poupando-lhes sofrimento e assegurando a continuação dos protegidos? Não será difícil encontrar quem responda que sim a estas questões. Há nações no topo da ordem mundial a viver com a pena de morte no sistema jurídico, em tolerância com a tortura e em paz com a morte dos seus por ausência de um sistema de saúde universal e eficaz. Mas, Portugal, com todos os seus defeitos e idiossincrasias, não é um país assim.

Portugal afirmou-se no quadro das nações por ser pioneiro na abolição da pena de morte, teve a coragem de ser liderante na abolição da escravatura e, até no Estado Novo de má memória, dava lições do caminho a trilhar contra o racismo aos ditos países que mandavam e mandam no mundo. Tudo isto só é possível e só se consolida debaixo do primado da inviolabilidade da vida, daí, os constituintes o terem gravado de forma inequívoca na Constituição da Democracia, como formalização da matriz que assiste ao pioneirismo civilizacional que Portugal soube ir abraçando. Pôr em risco tudo isto, na perigosa convicção de que o individualismo ou a comodidade se devem sobrepor aos princípios legitimadores de todos os outros direitos e deveres que conformam a ordem social, é pura corrosão dos alicerces fundamentais do nosso estado de direito democrático. A maioria dos Deputados soube, felizmente, entender estes princípios e a magnitude da sua importância; compreendeu, o que é essencial no legislador, que nem tudo o que se normaliza é bom, que a liderança moral das nações não está indexada directamente ao pib, que a lei deve estar ao serviço do homem e da sociedade e não de um programa ideológico.

Há bons motivos para estarmos orgulhosos de quem realmente somos.