Foi com aparente indiferença que a comunidade judiciária acolheu a notícia da existência de uma suposta instrução da Procuradora-Geral distrital do Porto, nos termos da qual os magistrados do Ministério Público da região Norte do país, sem a devida autorização, não devem pedir a absolvição de acusados nos casos de criminalidade mais grave ou em processos com repercussão social e que impliquem relevância mediática.

O magistrado do Ministério Público que intervenha nas fases de instrução ou julgamento e pretenda assumir, relativamente a matéria de facto ou de direito, posição diversa da sustentada na acusação ou pronuncia, deverá comunicá-la, fundamentando, ao Magistrado do Ministério Público coordenador da comarca.

Com exceção do presidente do sindicato dos Magistrados do Ministério Público, que, honra lhe seja feita, esperneou como pode, não ouvi qualquer outra profissão judiciária, designadamente, a minha bem-amada Ordem, às avessas com afazeres eleitorais, refletir sobre esta instrução e dela fazer a devida ponderação.

Atenta a estrutura hierarquizada do Ministério Público a questão não está na possibilidade legal da existência de instruções emanadas de cima para baixo da hierarquia. A ponderação impõe-se porque a emanação desta concreta instrução, mais do que a discussão dos limites aos poderes dos superiores hierárquicos, coloca em crise a própria essência da natureza das funções, no limite, a consideração do Ministério Público como uma verdadeira magistratura.

Concretizando: não são de hoje as opiniões que sustentam que há uma certa tensão (há quem diga, até, ambiguidade) no desenho legal do estatuto do Ministério Público. Se por um lado se reconhece a cada um dos seus agentes autonomia técnica e subordinação apenas a critérios de legalidade e objetividade, por outro, sem prejuízo dessas mesmas características, atribui-se-lhes um dever de obediência hierárquica às diretivas, ordens e instruções dos seus superiores.

As primeiras atribuições são o traço distintivo que confere ao Ministério Público a aura de uma magistratura; as segundas, o traço de uma corporação, não no sentido pejorativo do termo, mas no sentido de um conjunto de pessoas que agem como se fossem um só corpo, buscando a execução de objetivos comuns e submetidos às mesmas regras.

O que esta concreta instrução suscita é a desconfortável sensação que por via dela se pode estar a colocar em causa o delicado equilíbrio desta tensão funcional, sacrificando a vertente de magistratura à lógica de corpo de uma instituição.

Serão porventura os sinais dos tempos e dos “processos com repercussão social e que impliquem relevância mediática”, onde em nome de uma suposta unidade da atuação do Ministério Público, se desvaloriza a imediação do Procurador que assistiu à produção de prova, sujeitando a sua atuação a uma autorização superior, se necessário com um pedido de adiamento da diligência, por acaso, aliás, com mais que duvidosa cobertura legal.