Temos assistido nos últimos anos a perigosas investidas contra as Forças Armadas (FA) por parte de diferentes responsáveis pela sua tutela. Esse comportamento tem-nas empurrado para a sua desestruturação e quase irrelevância social, afastando-as do centro de gravidade político e social do Estado. Isso tem sido feito de modo deliberado, não só pelas anteriores como pela atual equipa ministerial, razoavelmente desconhecedoras dos problemas que têm em mãos.

Esse comportamento tem-se manifestado em múltiplas vertentes, nomeadamente em matéria de direitos e deveres. Falamos do atropelo à condição militar, tratando os militares como funcionários públicos (sobretudo quando se trata de direitos). Ficou patente em sede de Comissão Parlamentar de Defesa, quando a Secretária de Estado dos Recursos Humanos e Antigos Combatentes justificou a penalização nos vencimentos dos militares que requereram a aplicação da licença para assistência inadiável a filho ou outro dependente a cargo menor de 12 anos, com o facto de não fazer sentido existir uma lei para os trabalhadores em geral e uma lei especial para os militares.

A investida tem a ver também com a progressiva deterioração dos vencimentos. Das 37 categorias profissionais da Administração Pública, os oficiais das FA encontram-se posicionados no 22º lugar, os sargentos no 26º lugar e as Praças no 36º lugar.

Segundo um estudo da AOFA, não contestado por ninguém, os sargentos da GNR e os chefes da PSP já ganham mais do que os oficiais das Forças Armadas, para não referir a discrepância de vencimentos entre sargentos das FA e postos equivalentes nas Forças de Segurança, forçando muitos militares a arranjar part times para conseguirem alimentar condignamente as suas famílias. Por seu lado, as Praças das FA auferem mensalmente menos 583 euros que um Guarda da GNR e menos 558 euros que um Agente da PSP. Talvez isto consiga explicar a pouca atratividade da carreira militar.

Entretanto, o Parlamento, com os votos contra e a abstenção dos grupos parlamentares do PS, PSD, CDS e IL, reprovou a contagem do tempo de serviço para progressão nas carreiras dos militares das FA e restantes Corpos Especiais, congelada nos tempos da troika, contrariando o que tinha sido feito em 2018 relativamente à Função Pública. Uma discriminação incompreensível.

Por outro lado, o Ministério da Defesa Nacional (MDN) iludiu os 500 mil ex-combatentes acenando-lhes com o usufruto do debilitado Sistema de Saúde Militar (SSM). Interrogamo-nos como é que um ex-combatente que vive em Bragança pode beneficiar do SSM. Pior, após seis anos de funcionamento, ainda não foi estabelecido um modelo de financiamento do HFAR pelo SNS, tão alardeadas que foram as suas responsabilidades em matéria de apoio ao SNS. Ou será ainda preciso recordar que os militares além de descontarem para a ADM também descontam para o SNS e não se está a fazer favores a ninguém?

É bom não esquecer, que foi a prontidão do HFAR, assente na “condição militar”, que lhe permitiu dar uma resposta rápida, dentro e fora de portas, num regime de pronto-socorro perante as incontáveis solicitações, mais visíveis em contexto de pandemia.

A estes aspetos de natureza “corporativa” há que acrescentar a fraca prestação dos decisores políticos, que conduziram a Instituição Militar ao estado comatoso em que se encontra, apesar da imagem colorida apresentada pelo CEMGFA numa recente entrevista ao “Diário de Notícias” (argumentando que terá resgatado as FA da situação de Tancos), provavelmente a pensar na sua recondução.

Não podíamos deixar de referir a inaceitável leniência do MDN com o incumprimento público e notório do contrato de aquisição de drones adquiridos com dinheiro do Fundo Ambiental. Parece não incomodar ninguém que se recorra ao Fundo Ambiental para, disfarçadamente, suprir limitações da Lei da Programação Militar. Melhor seria que o secretário-geral do MDN estivesse atento ao portal “base” para detetar problemas na contratação pública, como compras fracionadas, de drones e não só, em vez de consumir o seu tempo com as questões de igualdade de género, onde deixou a nu um total desconhecimento do que se passa nas fileiras.

A Marinha está praticamente parada, sem pessoal e sem dinheiro para combustível e manutenção, dispõe apenas de um navio operacional para fazer SAR. Já este ano, a FAP teve de contratar empresas civis espanholas para formar os seus pilotos de helicóptero. O Exército está “nas lonas”, há regimentos cujos efetivos rondam a centena e meia de militares.

Na lógica da marginalização social, os lugares onde faz todo o sentido encontrarem-se militares como assessores, vemos agora boys e girls, com uma arrogância ao nível da sua ignorância, já que de FA pouco ou nada percebem. Na esmagadora maioria dos casos nunca entraram numa unidade militar. Desconhecem a Instituição e os seus problemas, não têm pensamento estratégico e vêm fazer on-the-job training durante o exercício. Dá-se a situação caricata do Arsenal do Alfeite não integrar oficiais de Marinha no seu Conselho de Administração. Ficámos atónitos quando constatámos recentemente que o próprio MDN desconhecia que os custos da participação das FA no combate aos incêndios eram ressarcidos pelo MAI.

Era bom que o MDN se preocupasse em resolver os problemas que efetivamente afetam as FA, em vez de se dedicar a futilidades, como a presente promoção da revisão do Conceito Estratégico de Defesa Nacional, sobretudo quando conhecemos a sua utilidade em matéria de orientação de políticas setoriais. O atual Conceito refere o Magrebe como área de interesse nacional, mas as tropas portuguesas encontram-se no Mali e na República Centro-Africana. Dá que pensar.

Uma vez aqui chegados, há que fazer opções. Os políticos têm a boca cheia de controlo democrático das FA apenas para o que lhes interessa. Não assumem na totalidade as consequências dessa opção. Se em matéria de género, por exemplo, são todos “modernaços”, no “jogo democrático” dos direitos são bastante retrógrados e até mesmo provincianos.

A pós-modernidade passa imediatamente a ocupar um lugar no caixote do lixo. Esquecem-se, ou provavelmente desconhecem, que o sindicalismo militar está devidamente consolidado – e nem sequer é questionado – em democracias avançadas, a que Portugal se encontra a uma grande distância. Por exemplo, na Noruega desde 1835. Existe, pois, neste jogo, uma assimetria inaceitável. Só algumas boas práticas interessam para a tutela. Já a useira e vezeira violação da lei em matéria de audições prévias das associações socioprofissionais parece ser eticamente aceitável.

E porque é que chegámos a este estado calamitoso? Porque existe um déficit de reivindicação e de influência dos militares, ao contrário de outros corpos da Administração Pública (juízes, magistrados do Ministério Público e diplomatas) com sindicatos representativos das suas classes. Os militares foram vítimas da sua própria cultura. Sempre desprezaram a necessidade de se organizarem fora da hierarquia como grupo de poder junto das instâncias governamentais.

Coloca-se, pois, a necessidade de tentar perceber como devem os militares atuar perante um ambiente tão desfavorável, mesmo hostil, que soluções lhes restam no quadro democrático para melhor defenderem os seus interesses, aumentarem e fortalecerem a sua capacidade reivindicativa? Não vejo outra solução que não seja o sindicalismo, ou outras formas avançadas de associativismo. Relembrando uma frase de um professor da Academia Militar, já falecido, que ficou célebre, a não ser o sindicalismo (ou outras formas avançadas de associativismo) o caminho para romper com o impasse, “então digam lá qual é o outro!”. Tudo o que até agora foi testado falhou.

O sindicalismo militar, ou outra forma avançada de associativismo, não é incompatível com o juramento de fidelidade à Bandeira. Olhando para os países onde o sindicalismo militar é uma prática consolidada, os tais que servem de referência apenas para algumas coisas, não consta terem existido quebras de disciplina ou menor eficácia das tropas no cumprimento da missão. É bom que se perceba que o sindicalismo militar não visa subverter a cadeia de comando nem as decisões da hierarquia. Não é esse o seu objetivo.

Ao não haver abertura no Estado português para atender às justas reivindicações dos militares em matérias de direitos, parece não restar às associações socioprofissionais outra solução que não seja a de recorrem a outras instâncias europeias, como aconteceu, por exemplo, em relação à República de Irlanda, por parte da EUROMIL, no que respeita, entre outros, ao direito de contratação coletiva, tendo como referência a Carta Social Europeia. Já em 2014, o Tribunal Europeu de Direitos Humanos decidiu que a proibição absoluta do direito dos militares ao sindicalismo viola o artigo 11º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos. Ou será que para o Estado português, a adoção dos normativos europeus é seletiva?!

Estou ciente de que o sindicalismo militar é um tema malquisto nas FA, sobretudo para as gerações mais antigas. Veem-no com reserva e suspeição. Têm ainda na memória o PREC e os receios da partidarização das FA. As gerações mais novas têm medo. O Sistema de Avaliação em vigor recompensa o carreirismo e a subserviência. Uma posição mais afoita em prol dos direitos é penalizada em termos de carreira. Contudo, há fatores novos a introduzir na análise. Há que ter em conta que as FA de hoje são significativamente diferentes das FA de há vinte anos.

O prestígio e respeito pelas FA não advêm dos encómios de circunstância de que são frequentemente alvo, como aconteceu quando o MDN condecorou militares a torto e a direito, ainda a pandemia ia no adro, escondendo a desorientação sobre o modo de empregar as FA numa circunstância pandémica (não fossem ganhar demasiada visibilidade).

Olhemos então para o lado. Pode ser que encontremos aí a resposta. Muito mais haveria para dizer.