No primeiro dos 85 ensaios que publicaram em defesa da ratificação de uma Constituição dos Estados Unidos da América, James Madison, Alexander Hamilton e John Jay escreveram que “parece ter sido reservado ao povo deste país, pela sua conduta e exemplo, decidir a importante questão de se as sociedades dos homens são realmente capazes ou não de estabelecer um bom governo a partir da reflexão e da escolha, ou se estão para sempre destinadas a depender, nas suas constituições políticas, do acidente e da força”.
Por outras palavras, a república americana era para eles uma experiência acerca de se uma nação poderia ser governada por um estado de direito, “de”, “para” e “pelo povo”, e não pelos caprichos arbitrários de uma oligarquia ou um déspota, nem pela anarquia da multidão tumultuosa.
As ameaças à liberdade e à república eram, para eles, muitas e poderosas. Temiam que os governantes subvertessem o regime, que a maioria do povo, através dos seus representantes devidamente eleitos, oprimisse a minoria, ou mesmo que esse não fosse o caso, fizesse escolhas perniciosas para o bem da república.
Esses perigos deveriam ser diminuídos pelo princípio representativo (“refinando” e “ampliando” as “opiniões públicas” através da “mediação de um corpo de cidadãos eleitos” e tornando esse corpo de cidadãos dependente do corpo maior de eleitores), e reforçada pela “distribuição de poder por departamentos distintos” e pela “introdução de travões e contrapesos legislativos”.
Através destes mecanismos, criar-se-iam representantes que, mesmo que apenas motivados pelo interesse de preservar o poder que lhes era dado, estariam dispostos a resistir às tentações de abuso de poder dos outros órgãos políticos ou à demagogia que estes promovessem. Tudo o que a Constituição precisava de fazer era distribuir o poder para que cada ramo governamental fosse dotado dos meios necessários para manterem o equilíbrio entre cada um deles, todos podendo resistir à iniciativa dos outros e sem meios de superar qualquer resistência legítima.
Na Convenção que elaborou a Constituição, nenhuma “parte do sistema” poderia ter sido “atendida com maior cuidado” do que a Presidência. Os homens reunidos em Filadélfia estavam bem cientes de como o chefe do poder executivo poderia usar a sua posição para “perverter a sua administração num esquema de peculato ou opressão“, ou mesmo “sucumbir às potências estrangeiras”. Afinal, o argumento americano para a sua independência baseava-se na acusação ao rei inglês de que este tinha abusado do seu poder.
Para que tal não acontecesse na nova União, os homens da Convenção não deram ao presidente um poder monárquico, sem limites, para fazer leis. Pelo contrário, deram-lhe apenas a responsabilidade de executar as leis feitas pelo Congresso.
Não lhe deram um poder absoluto de nomear pessoas para os vários postos governamentais, exigindo que os candidatos que escolhesse fossem ouvidos e confirmados pelo ramo legislativo. Se deram ao presidente o poder de vetar leis do Congresso, permitiam a este último anular esse veto se dois terços de ambas as Casas desejassem fazê-lo. E, é claro, forneceram ao Congresso o poder de remover o presidente através de um processo de “impeachment”.
Como explicou a historiadora Jill Lepore na “New Yorker”, “os delegados à Convenção Constitucional incluíram o impeachment na Constituição” para que o país pudesse ter um “recurso” além da “guerra civil, da revolução ou do assassinato” se e quando “o magistrado-chefe se tornasse obnóxio”. A Câmara dos Representantes recebeu o poder de escrever e votar os artigos de “impeachment”, e o Senado o poder de absolver ou condenar o presidente de acordo com as provas apresentadas.
Madison, por exemplo, era “sensível” ao argumento de que as “barreiras de papel” não seriam “tão fortes” ao ponto de protegerem suficientemente a república contra a subversão do que nelas estava escrito. Embora pudessem “estabelecer a opinião pública a seu favor e despertar a atenção de toda a comunidade”, seria sempre necessário que esta agisse em conformidade.
Por outras palavras, para que a Constituição funcione, é necessário que o povo e seus representantes a respeitem; para que a Constituição funcione, é necessário que aqueles que juraram defendê-la ajam de acordo com ela. Em última análise, aqueles cujo poder a Constituição deve limitar são os que devem aplicá-la e, se não estiverem dispostos a fazê-lo, ela não valerá a pena o papel em que está escrita.
Chegados a este Ano da Graça de 2019, o Congresso está a realizar um processo de “impeachment” a Donald Trump, e as audiências realizadas pela Câmara dos Representantes provaram à saciedade que o presidente usou dinheiro orçamentado pelo Congresso para chantagear o governo ucraniano no sentido de 1) ajudar Trump a desacreditar as conclusões dos serviços de informação americanos sobre à responsabilidade russa pelos ataques às eleições presidenciais de 2016 e 2) difamar um dos opositores de Trump nas eleições de 2020.
No entanto, é improvável que os republicanos no Senado votem pela sua condenação e remoção, com medo de uma base partidária cega pela propaganda da Fox News e por uma adoração cultista do presidente. Madison, Hamilton e Jay esperavam que a Constituição que defendiam usasse a “ambição para combater a ambição”, de forma a que um ramo do governo contivesse os abusos de outro. Mas, em 2019, a ambição de um ramo está ligada à ambição de outro, cada um alimentando-se do outro e sem qualquer incentivo para se afastarem.
A verdade é esta: o processo de “impeachment” de Trump mostra que a resposta para a pergunta à qual Madison, Hamilton e Jay esperavam que a Constituição respondesse afirmativamente é “não”, e que a experiência americana falhou.
Mesmo que acontecimentos e possíveis revelações posteriores levem os republicanos do Senado a votar para condenar Trump, o mero facto de que as provas já conhecidas não terem sido suficientes para que não restasse qualquer dúvida de que o condenariam, mostra que a república americana ainda “depende do acidente e da força”.
Se o resultado de um processo de “impeachment” e o seu julgamento no Senado depende não dos factos, mas da disponibilidade dos membros de um partido para serem cúmplices dos crimes que esses factos revelam, absolvendo o presidente que os ordenou e cometeu, isso significa que “o bom governo” está permanentemente refém das circunstâncias do dia (“o acidente”) e do peso eleitoral (“a força”) dos que estão no poder, em vez de repousar na “reflexão e escolha”.
Os leitores mais imbuídos de um espírito antiamericano talvez se tenham entusiasmado ao ler as linhas anteriores. Não deviam. Porque o falhanço do sistema constitucional americano não é um falhanço do sistema constitucional americano, é um falhanço das “sociedades humanas”, da natureza humana, e os países que (ainda) não sofreram o destino que os EUA estão a sofrer apenas tiveram mais sorte com os tais “acidentes” e equilíbrio de “força” a que foram sujeitos, e não arranjos constitucionais melhores.
E, diga-se de passagem, Portugal não tem razões para se incluir nesse lote de sortudos. Afinal foi aqui que alguém como José Sócrates foi protegido por todos ou quase todos, da maioria socialista ao sistema judicial, quando já era mais do que evidente o carácter corrupto da sua acção em casos como o da “licenciatura”, do bloqueio da CGD à OPA da Sonae à PT, ou da tentativa de tomada de controlo da TVI.
O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.