O veículo X que circulava na A8 despistou-se. Em consequência, Alexandra, que estava sentada no banco da frente ao lado do condutor e que à data se encontrava grávida, acabou por perder o bebé tendo ainda ficado com sequelas físicas para a vida.

Para além de indemnizações por danos patrimoniais e não patrimoniais, o Tribunal da Relação de Lisboa (TRL) condenou no mês passado a seguradora do veículo X a pagar à Alexandra um montante “pelo dano do direito à vida do nascituro”. Considerou então o TRL que “ainda que se entenda que o nascituro concebido (…) não tem personalidade jurídica plena, ele é (…), um ser humano, uma criança em gestação, ou seja, um bem jurídico autónomo e, como tal, tem direito ao desenvolvimento geral da sua personalidade física e moral e a não ser ofendido ou ameaçado na sua vida ou saúde”. Esta decisão parece ter passado relativamente despercebida à opinião pública.

Ora, se a Justiça reconhece que a vida e a saúde de um nascituro com sete semanas não podem ser colocadas em causa, é de questionar como é que estes direitos fundamentais podem coabitar com o regime de interrupção voluntária da gravidez que vigora no nosso País?

As estatísticas mais recentes revelam que em Portugal foram realizados em 2017 cerca de 15 mil interrupções voluntárias até às dez semanas(1). E, desse total, 1.060 mulheres efectuaram mais do que uma interrupção no espaço de apenas dois anos. É caso para recordar as sábias palavras de São João Paulo II na Carta Encíclica Evangelium Vitae: “Tudo parece acontecer no mais firme respeito da legalidade, pelo menos quando as leis, que permitem o aborto e a eutanásia, são votadas segundo as chamadas regras democráticas. Na verdade, porém, estamos perante uma mera e trágica aparência de legalidade, e o ideal democrático, que é verdadeiramente tal apenas quando reconhece e tutela a dignidade de toda a pessoa humana, é atraiçoado nas suas próprias bases: como é possível falar ainda de dignidade de toda a pessoa humana, quando se permite matar a mais débil e a mais inocente?”.

Não deveria o Estado português providenciar verdadeiros apoios à natalidade e à família (aquilo que hoje existe é uma brincadeira!), ao invés de disponibilizar o caminho mais fácil? O acórdão do TRL é por isso muito importante, no sentido em que, ao reconhecer o direito à vida e à saúde de uma criança em gestação com menos de dez semanas, poderá relançar o debate em torno deste tema tão relevante. O que farão as forças “pró-vida” no Parlamento? Os dados estão lançados.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.

 

(1) De fora deste valor encontram-se as interrupções relacionadas com perigo de morte ou de grave lesão para a grávida, grave doença ou malformação do nascituro, bem como interrupções por motivos de gravidez resultantes de crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual.