O estimado empreendedor e empresário Rui Nabeiro (1931-2023) disse na cerimónia dos Globos de Ouro da SIC em 2022: “Trabalho para mim, trabalho para a comunidade, trabalho para todos.” Leio nestas palavras uma versão simplificada do conceito introduzido por Adam Smith em 1759 no livro “Theory of Moral Sentiments” e em 1776 no livro “An Inquiry Into the Nature and Causes of the Wealth of Nations”. O conceito ficou conhecido como “mão invisível”.

Smith partia do princípio do “interesse próprio” (self-interest) – ações que resultam em benefício pessoal – para explicar que o melhor benefício económico pode, em geral, ser conseguido quando os indivíduos atuam no seu próprio interesse. E explicava que “não é da benevolência do talhante, do cervejeiro ou do padeiro que poderemos esperar que venha o nosso jantar, mas sim da apreciação que fazem do seu próprio interesse”. E concluía que quando dezenas ou milhares atuam no seu próprio interesse, são criados bens e serviços que beneficiam consumidores e produtores.

Críticos argumentam que da mão invisível nem sempre resultam benefícios sociais e que pode gerar ganância, externalidades negativas – fenómeno nocivo qualquer que seja o modelo onde haja humanos envolvidos – e agarram-se, justificada ou injustificadamente, a situações condenáveis para desacreditar ou tentar destruir a economia de mercado e as sociedades liberais democráticas. Estas protegem-se instituindo mecanismos de Estado, como tribunais ou reguladores como a Autoridade para a Concorrência que há dias celebrou 20 anos.

Os valores e a arquitetura do Estado liberal democrático podem ser aviltados e manipulados, por ação ou omissão de elementos individuais ou das próprias instituições do Estado, por vontade própria, por incompetência, por ignorância, ou por desleixo, como tem ocorrido com decisões de membros do Governo, ou quando agentes do mercado praticam atos  de corrupção de funcionários do Estado ou de políticos eleitos.

Infelizmente, este processo pode conduzir à destruição do Estado liberal democrático e está em curso em Portugal. O país deixou de ser considerado pelo Economist Intelligence Unit como país liberal democrático, tendo descido para o nível de democracia eleitoral, muito por causa da corrupção. Muito mau.

Nabeiro falou mesmo depois de nos ter deixado. E outros falaram entretanto exprimindo o mesmo espírito contributivo para a sociedade, mas manifestando a sua independência. E falaram com palavras fortes, raro ouvirem-se de lideres empresariais, sempre polidos e simpáticos como é apanágio de António Saraiva da CIP. A primeira voz foi a de Cláudia Azevedo.

Numa carta aos empregados da Sonae, Azevedo afirmou “que não existam dúvidas de que as nossas decisões são orientadas pelos nossos valores, em todos os nossos negócios. Fazemos o que está certo. Sempre o fizemos e sempre o faremos.” Garantiu que “podem contar com a Sonae para continuar a ser um motor de desenvolvimento para Portugal” e denunciou a “campanha de desinformação sobre as causas da inflação alimentar, com danos gravosos para a reputação do setor da distribuição alimentar”.

Depois falou Filipe de Botton, líder da Logoplaste, na Associação Business Roundtable. Considerou que medidas para controlar a inflação, como a fixação de preços, destroem o tecido económico: “Quando vejo governos como o nosso a quererem controlar a inflação com instrumentos anacrónicos, vai destruir todo o tecido económico. Destrói a confiança e destruindo a confiança destrói tudo”.

De facto, a confiança é a pedra basilar de todas as relações humanas (e até destes com os animais) e assenta em dois pilares fundamentais: transparência e assunção de responsabilidades (accountability). Botton disse mesmo que os empresários devem fazer-se ouvir e “ir para a rua”.

A seguir falou Pedro Soares dos Santos, presidente executivo da Jerónimo Martins. Em entrevista ao “Público”, colocou em causa a seriedade do Governo e, tal como Botton, revelou que a confiança está em processo de destruição. Sobre a negociação com as empresas de distribuição afirmou que “o diálogo com a distribuição é possível sobre a redução do IVA “desde que “o Governo se torne honesto”.

Não havendo confiança, não há honestidade nas relações. Tal como Azevedo, Soares dos Santos acusa o ministro da Economia de destruir valor das empresas ao “denegrir a imagem do setor”.

É significativo e de saudar que, finalmente, os empresários falem diretamente para a opinião pública. Recordo que há cinco anos, em abril de 2018, escrevi o seguinte neste jornal num artigo como título “Empresários: falem com a opinião pública”:

“Creio que há um problema de comunicação por parte das instituições representantes das empresas e das próprias empresas portuguesas. A ideia que tenho é que falam em circuito fechado, enviando mensagens para os poderes públicos, eleitos e não eleitos, para a opinião publicada e para putativos investidores estrangeiros. Não falam diretamente para a opinião pública, não estabelecem uma conversa pública, utilizando a televisão, websites interessantes e úteis e as redes sociais.

“Na minha opinião, fariam bem e deveriam as instituições empresariais falar diretamente para a opinião publica e sem temores defender e explicar porquê os valores da iniciativa e propriedade privada nas democracias liberais são úteis, indispensáveis e necessários ao progresso dos cidadãos e das suas famílias.”

Será que a linha vermelha foi ultrapassada e que estamos perante um novo vigor da sociedade civil ou foi apenas um epifenómeno, uma zanga pontual causada pela incompetência e ignorância do Governo? Espero que os empreendedores e empresários de Portugal afirmem repetidamente que são eles que criam riqueza, pagam impostos e dão emprego que paga impostos.

Termino com um pedido aos empresários e às instituições que os representam: por favor, não tornem a falar de “apoio do Governo às empresas”. É preciso ser mais factual e mais persuasivo junto da opinião pública. Devem falar de iniciativa, de liberdade empresarial, de inovação, de progresso, de bem-estar, de ataque sem tréguas à corrupção que é uma inimiga da livre concorrência, de desburocratização, de fiscalidade propiciadora de mais riqueza e, logo, de mais receita fiscal, e tantas outras coisas que faltam para Portugal crescer.

É certo que o “apoio” que reclamam não se esgota em subsídios, mas também abrange por exemplo legislação. O problema é que o verbo “apoiar” se tornou semanticamente negativo, principalmente quando vindo de empresas. Mas também quando aplicado aos cidadãos, é errada a sua utilização no contexto “apoio do Governo”. Qualquer “apoio” não vem do Governo nem do Estado: vem dos contribuintes individuais e das próprias empresas. Como escrevi há dias no LinkedIn:

“Acabo de ouvir, uma vez mais, num canal de TV qualquer coisa como «o Governo vai dar (ou apoiar) 250 euros às famílias mais carenciadas». Esta maneira de comunicar o apoio de contribuintes, muitas vezes todos os contribuintes, a outros portugueses perpetua a ideia de que o apoio se deve à generosidade do Governo. É uma afirmação política, não é jornalística, factual. Contribui, inadvertidamente, em muitos casos, para a propaganda do governo, seja ele qual for.

“Nem o governo nem o Estado têm dinheiro. O dinheiro que distribuem é todo ele dos cidadãos ou empresas contribuintes e dos credores. O governo faz ou deve fazer a gestão judiciosa e competente do dinheiro que lhe é confiado ou que pede emprestado em nome dos cidadãos para cumprir as obrigações do Estado, designadamente as de apoio social. Pelo que o apoio nunca vem do governo. Do ponto de vista jornalístico mais correto será dizer que o Governo aprovou distribuir ou entregar, mas não dar ou apoiar, 250 euros às famílias mais carenciadas com origem nos impostos ou em maior endividamento do Estado.”