Portugal declarou formalmente que reconhece Juan Guaidó como presidente interino da Venezuela, com a missão de convocar eleições presidenciais no mais curto espaço de tempo possível. Tenho dito muitas vezes que há um antagonismo curioso entre o Santos Silva homem partidário e o Santos Silva homem de Estado – em contraste com o homem partidário irascível, truculento e caceteiro, o homem de Estado revela-se sensato, responsável e saudavelmente previsível. Foi assim na Defesa Nacional, repete-se nos Negócios Estrangeiros. Felizmente.

Como qualquer democrata, tenho a maior repulsa pelo ditador Maduro, mas o meu regozijo com a decisão do Estado português prende-se primordialmente com outra ordem de factores, ligados à defesa dos seus interesses permanentes. Obviamente, a questão de regime deve interpelar-nos a todos, mas ao Estado cumpre uma análise mais alargada das suas relações externas.

Neste caso particular, a segurança e bem-estar da enorme comunidade de origem portuguesa deve ser a grande prioridade. Segue-se a perspectiva do potencial futuro das relações bilaterais em questões económicas, de cooperação e culturais. E, por fim, a valiosa previsão de uma transição para a democracia e respeito dos Direitos do Homem. O chamado rule of law valoriza os Estados e as relações que estabelecem no quadro das nações.

Maduro é, felizmente, um presidente condenado pela realidade, uma aberração sem viabilidade. Guaidó, que ainda não conhecemos assim tão bem, corporiza a esperança e constitui-se como única saída para a situação de calamidade em que socialismo bolivariano mergulhou o país. Portugal apostou no único futuro possível, a nossa comunidade naquele país dificilmente poderá ficar pior do que já está, exigia-se este pragmatismo ao Estado. Esperemos que prevaleça um módico mínimo de bom senso, capaz de poupar a Venezuela a uma guerra civil.

Curiosamente, a crise venezuelana permitiu relembrar no plano nacional a natureza obtusa e contraditória da geringonça. Se a ala esquerda do PS se mostrou ufana a declarar a extensão do arco da governabilidade democrática até à extrema-esquerda, bastou uma crise internacional para provar que o arco dos partidos democráticos se mantém imutável do CDS ao PS, sem novos membros à esquerda.

O PC, igual a si próprio, de modo coerente e corajoso, manteve o seu testemunho de fidelidade às ditaduras opressoras comunistas, na linha própria de quem ainda se identifica matricialmente com Lenine e Estaline. O Bloco também não surpreende, de modo mais hipócrita, fugindo quanto pode na sua tentativa de vestir a pele de cordeiro, lá termina, quando confrontado, a agir na total solidariedade e identificação com o regime opressor. O voto parlamentar de pesar pelas vítimas venezuelanas relembrou, a quem quis esquecer, onde começa e termina a democracia no nosso Parlamento.

Por fim, a oportunidade de confirmar os novos alinhamentos da ordem mundial. A crise venezuelana proporcionou a formalização clara dos dois novos eixos e o reordenamento político da América Latina. Do lado de Guaidó, os Estados Unidos, a Europa, a Austrália, o Canadá, a esmagadora maioria da América Latina e alguns países africanos. Do lado de Maduro, a Rússia, a China, a Turquia, o Irão e dois apaniguados regionais com o tirano Morales à cabeça. Aqui se confirmam e solidificam os dois blocos que se enfrentarão em todas as crises regionais, da Venezuela à Síria, e onde quer que venham a surgir.

Independentemente do carácter e capacidade dos respectivos presidentes, o mundo voltou a ser bipolar, com novos blocos fortalecidos e geograficamente mais extensos, liderados, como no passado, por Rússia e Estados Unidos.

A greve selvagem

Uma nota breve sobre o estado da nossa democracia. Todas as greves  que envolvam sectores fundamentais do Estado, dos quais o suprimento das necessidades básicas dos cidadão dependa, são susceptíveis de apaixonada discussão quanto à sua legitimidade. Quando se trata de uma greve capaz de parar o Serviço Nacional de Saúde, as posições tendem a extremar-se. Tudo isto faz parte do quadro humano e social normal.

Quem governa, quem se alcandorou ao governo a qualquer preço com legitimidade política discutível, deveria ser ainda mais cuidadoso na abordagem pública das questões sensíveis. O direito à greve tem consagração constitucional, por isso, qualquer governante que o ponha em causa, põe em causa a Constituição.

António Costa, ao criar o conceito “greve selvagem” para enquadrar a greve na saúde, abre um precedente de que não há memória. Contra a Constituição, hierarquiza as greves conforme a sua conveniência pesssoal. Contra os trabalhadores, usa todos os instrumentos, mais e menos lícitos, para tentar impor o silêncio e a resignação.

Andou a esquerda a pregar tantos anos a inalienabilidade do direito à greve e a suposta defesa dos direitos dos trabalhadores, para Costa, em 2019, enterrar a máscara e dizer o que realmente lhe vai na alma. Não é bonito de se ver, mas diz-nos ao que cada um vem.

Noutros tempos, alguém que se aventurasse, incauto, a teorizar sobre “greves selvagens” seria imediatamente crucificado. Sindicalistas fariam a cruz e os partidos de esquerda pregariam o corpo para exemplo de todos no altar dos direitos dos trabalhadores. Pois, com Costa e a repartição de cumplicidades, interesses e benesses, foi o que se viu! E assim, nasceu à esquerda o conceito da “greve selvagem”, pelo menos até serem apeados do poder.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.