No nosso sistema político, o Presidente é eleito, o Parlamento é eleito, o Governo é designado em função dos resultados das eleições legislativas. Os três são qualificados pela Constituição como órgãos de soberania, porque exercem o poder em representação do povo soberano. A fonte da legitimidade de cada um está no voto.

A mesma Constituição também designa os tribunais como órgãos de soberania e atribui-lhes competência para administrar a justiça em nome do povo.

De onde vem, porém, a legitimidade dos tribunais e dos respetivos magistrados para agirem em nome do povo? Se o povo não interfere direta ou indiretamente na nomeação dos magistrados, nem estes respondem perante a comunidade pelas suas decisões, não será puramente formal – vazia de substância – esta ideia de que a justiça é administrada em representação do povo?

É certo que o governo das judicaturas é, no essencial, assegurado pelos Conselhos Superiores da Magistratura e dos Tribunais Administrativos e Fiscais, que têm, na sua composição, vogais indicados pelo Presidente e vogais eleitos pelo Parlamento.

Mas será isso suficiente, numa democracia contemporânea, que demanda níveis cada vez mais exigentes de transparência e de prestação de contas?

Se recuarmos aos primórdios da separação de poderes, verificamos que o grande arauto deste princípio basilar do Estado de Direito – o barão de Montesquieu, autor do célebre Espírito das Leis – não era verdadeiramente um democrata. Bem pelo contrário, era defensor de um sistema de governo misto, em que a legitimidade monárquica dominava o poder executivo, a legitimidade democrática estava na base do poder legislativo e, finalmente, a legitimidade aristocrática presidia ao preenchimento dos lugares e ao exercício do poder judicial. Não por acaso, Montesquieu era um aristocrata e exercia funções de juiz no tribunal de Bordéus – como, aliás, era comum na época.

Ciente da dificuldade em justificar, com tal fundamento, a existência de um poder judicial independente dos demais, Montesquieu seguiu dois caminhos. Por um lado, empenhou-se em desvalorizar o poder judicial que ele próprio tinha autonomizado: chamou-lhe “poder nulo” e disse dos juízes que eram apenas “a boca que pronunciava as palavras da lei”. Mas, por outro lado, tomando como exemplo o que acontecia em Inglaterra, alertou para a necessidade de chamar a comunidade para dentro do sistema de justiça – mormente para o julgamento dos crimes, através da instituição do júri. Bom seria que os cidadãos temessem a justiça, mas não os juízes.

Quando esta ideia de separação de poderes atravessou o Atlântico para ser consagrada pela primeira vez na Constituição dos EUA, os pais fundadores não se esqueceram desta recomendação do autor do Espírito das Leis. Em especial, a par de outros mecanismos de participação popular, os tribunais de júri permitem convocar a comunidade, ofendida pela prática do crime, a participar na reparação da injustiça, ao mesmo tempo que garantem a todos os cidadãos o direito a um julgamento pelos seus pares.

No fundo, a pretexto da separação de poderes e da independência da função judicial, o sistema de justiça não pode ser impermeável ao princípio democrático, nem deixar-se capturar por uma qualquer aristocracia, já não certamente de nascimento, mas por um aristocracia moral ou de saber (jurídico).

Ao contrário do que sucedeu nos EUA, o pecado original da fonte de legitimidade do poder jurisdicional nunca foi devidamente enfrentado na generalidade dos sistemas jurídicos da Europa continental. No caso português, como se tem visto, o problema tem atingido proporções dramáticas: um autêntico cisma entre o povo e a justiça que é formalmente exercida em seu nome.