Nos anos 90, a pensadora política Chantal Mouffe fez uma importante distinção entre adversários e inimigos políticos. Com os adversários políticos, podemos divergir muitíssimo, mas há uma garantia de acordo mínimo sobre as condições em que discordamos e em que lutamos politicamente. Com os inimigos, não podemos divergir nada pois não há qualquer espécie de acordo que permita outra luta além da da própria vida e segurança. Ora, quem quer um agenda política contra o aumento das desigualdades e a deterioração da vida social, seja em França seja na UE, tem em Emmanuel Macron um adversário político. Porque ele representa, como muitos outros por toda a Europa, a usurpação que desbaratou a social-democracia num projecto de radical liberalização, desde logo das leis laborais, e promoção de interesses da finança, como ficou bem patente no seu trabalho como ministro da Economia.

Marine Le Pen não é apenas uma adversária política, mas uma inimiga política. E se pode não o parecer para uma maioria que se sinta muito francesa e muito protegida pelo nacionalismo, será, a cada voto que alcance, a cada relativização que imponha, uma inimiga fatal para todas as minorias em França. De um adversário divergimos, mas de um inimigo não divergimos. Simplesmente, não o podemos aceitar em nome de todos os que ele não aceita. O que os democratas têm de perceber é que uma minoria de inimigos não é, como pode fazer crer Le Pen, apenas uma minoria de adversários, mas verdadeiramente o precipício para a democracia.

O contributo de Jean-Luc Mélenchon para este equívoco tem sido terrível. Se estivesse habilitado para votar nas eleições francesas, eu estaria agora, provavelmente, arrependido de ter votado Mélenchon na primeira volta. A sua incapacidade de repudiar com clareza Marine le Pen, dando espaço ao voto em branco ou à abstenção entre os seus apoiantes, na segunda volta, é uma catástrofe. Não era preciso apoiar política nenhuma de Macron para justificar um voto de rejeição liminar de le Pen. E ter dito que queria envolver 450 mil pessoas revela em Mélenchon um político hipócrita. A três dias das eleições não há qualquer orientação de voto apesar de estar em jogo uma candidatura de extrema-direita, cujo móbil é indissociável de uma mensagem de violência. Que outra coisa pode significar a mensagem em todos os cartazes de Le Pen de pôr a França na ordem?

Ambas as atitudes que em seguida descrevo são lamentáveis, merecedoras de crítica política e censura moral. Por um lado, aqueles que não querem sujar as mãos votando em Macron, confiantes que outros o farão por eles, preservando a sua pureza de uma forma que raia a mesquinhez política. Por outro lado, aqueles que anseiam pelo fim da União Europeia  e estão dispostos a exacerbar um prurido justificável em votar Macron para, na verdade, e de forma inconfessada e injustificável, dar força à extrema-direita para que seja pelas mãos desta que a UE abata com estrondo.

Pois venha o diabo e escolha. De uma forma ou de outra, é Le Pen quem ganha força, mesmo que perca esta eleição. De uma forma ou de outra, são as minorias que serão cada vez mais tratadas como inimigas, cada vez mais perto de serem vítimas democráticas da xenofobia. É este o preço que alguma esquerda se dispõe a pagar pela obsessiva vontade de fim da UE? Michael Löwy, importante pensador brasileiro há muitos anos em França, disse-o muito bem há dias, na Mediapart: é preciso bater Le Pen nas urnas e na rua.

Tal como Trump, Le Pen cavalga as reivindicações de trabalhadores que vêem as suas vidas e os seus projectos num impasse. Nada que não se esperasse, por mais enganoso que seja. Mas mais repugnante é ver alguma esquerda a fazer a recíproca: cavalgando exactamente os mesmos “nãos” que o nacionalismo e, na prática, dando-lhe carta verde. Como explicar, por exemplo, a hiper-reacção a Macron em França, comparada à condescendência com Theresa May no Reino Unido? Não é este um jogo de linguagem demasiado parecido com aquele que Marine Le Pen fez com o seu próprio pai? Não se ouve a Le Pen uma afirmação explicitamente racista ou anti-semita, mas são exactamente os mesmos “nãos” que estão em jogo: a França só para os franceses, a promessa de parar e inverter a imigração, o que porá as minorias de malas feitas, talvez com excepção dos portugueses de quem espera a subserviência e servilismo do passado. Há, ironicamente, também um “politicamente correcto” da extrema-direita, e que se caracteriza por ser um embuste mistificador, que tem de ser denunciado. É só essa a diferença entre pai e filha no clã Le Pen.

Uma última palavra para a maneira como se olha para os eleitorados. É preciso levar mais a sério quem votou na extrema-direita. O pior que se pode fazer é descredibilizar e acossar eleitorados, designadamente dar por pouco qualificados ou educados os votantes em Le Pen, como os do Brexit ou os de Trump. Ou retirar das suas qualificações, condição social, hábitos culturais uma razão para não levar as suas motivações de voto tão seriamente como as de quaisquer outros.  É um erro que só contribui para os deixar mais entregues a quem não queremos. Como é um erro ver o eleitorado de Mélenchon como um rebanho que seguiria o voto que este indicasse. Mas não é menor erro, de enorme responsabilidade política, Mélenchon não apresentar junto a quem votou nele todas as consequências da escolha que a França vai fazer este domingo.

O autor escreve segundo a antiga ortografia.