Há duas semanas, o “país político” – cada vez mais restrito ao conjunto de políticos, comentadores e jornalistas que divide o seu tempo entre São Bento e o Príncipe Real – achou por bem discutir se a Terra era plana, apesar de se saber que não é. Não literalmente, claro, mas quase: durante dias, a questão de se a carga fiscal tinha ou não aumentado atormentou as cabecinhas de uma série de gente que se julga responsável, apesar de os dados conhecidos mostrarem que a dita era a mais elevada de sempre.

No Fórum TSF de 4 de Abril, por exemplo, debateu-se por duas horas se “afinal estamos ou não a pagar mais impostos?”, como se não se tratasse de uma questão factual, além de qualquer dúvida ou divisão partidária. Para quem ainda não tivesse percebido, a “polémica” mostrou como a vida política, em Portugal, cada vez mais se limita a ser uma espécie de “reality show” a que só liga quem está “dentro da casa”.

Em momento algum aqueles que nela participam discutem qualquer problema substantivo (ou sequer real) do país ou possíveis soluções para o ultrapassar, entregando-se a uma pura disputa de artimanhas em torno de artificialidades, a que só assistem os protagonistas, num circuito fechado, em que ganha quem não tem razão mas quem é mais habilidoso a aldrabar a audiência ou a encurralar o adversário, e perde (sempre) o país.

Não é de admirar, portanto, que o comum português não só retribua proporcionalmente a falta de atenção que o “país político” dá ao que afecta a sua vida, como nutra por “eles” o mais profundo desprezo, que modestamente manifesta sempre que a rotação e a translação da Terra trazem consigo um acto eleitoral, do qual cada vez mais pessoas se abstêm de participar. Talvez fosse de esperar que os partidos fossem os primeiros a ficar assustados e preocupados com esta desmobilização eleitoral, decorrente da forma como eles próprios escolhem actuar, mas tenho dúvidas de que assim seja.

Afinal, a inércia do eleitorado contribui para a inércia das instituições, e desta dependem as clientelas e grupos de interesse de que dependem os partidos. Como partidos e respectivos “amigos” se alimentam mutuamente, à custa dos repugnados com a vida política do país – que no entanto não podem fugir a pagar o banquete orçamental –, esse progressivo minguar do “país político” (cada vez mais circunscrito a partidos, seus fiéis e “boys”) não é visto como uma ameaça, mas como uma garantia de que tudo continuará mais ou menos na mesma, faltando apenas decidir quais a agremiações que ocuparão o Estado por um determinado período de tempo, e qual a distribuição do bolo que optarão por fazer.

A única certeza é que essa será uma discussão só entre “eles”, e que todos os outros acabarão por achar que “nós” estamos excluídos dela. E como à medida que um número crescente de eleitores “comuns” desconfia cada vez mais dos políticos de qualquer partido, mais esses políticos ficarão dependentes do apoio dos grupos que dependem da manutenção do estado das coisas, revoltando ainda mais todos os outros, e assim sucessivamente, sem outro fim à vista que não o apodrecimento constante ou o aproveitamento populista de quem saiba manipular quem se sentir marginalizado.

Se e quando aparecer por aí um Trump à portuguesa (Rui Moreira, por exemplo, parece muito interessado em desempenhar o papel), ninguém terá razões para se espantar.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.