A auto-execução ecossistémica na forma de Smart Contracts, possibilitada pela blockchain, tem valor legal ou não?
A discussão não é nova e já deu origem a propostas de legislação apropriada, como é o caso do Lichenstein. Desta vez foi a Comission Law do Reino Unido a pronunciar-se em Novembro passado num documento oficial dirigido ao respectivo governo (nota: a Comission Law é um comité criado pelo Parlamento do Reino Unido com o objectivo de promover reformas na lei). Este documento público de 211 páginas com recomendações sobre Smart Contracts é surpreendente.
À partida, um Smart Contact não tem valor legal, tal como qualquer outro código informático. É verdade que a informática pode executar transacções com valor legal, mas sempre sob a responsabilidade de uma qualquer pessoa jurídica, como por exemplo um banco a executar informaticamente as operações a que temos direito. Ou seja, se previsto pela lei, esteja ou não ao abrigo de um contrato entre as partes, um código informático já pode ter valor legal.
Porém, há uma diferença muito significativa entre os Smart Contracts e a informática tradicional, que é o facto de os primeiros serem auto-executáveis para todas as partes. É por isso que é um tema particularmente apaixonante e já aqui discutido relativamente aos potenciais impactos no direito de propriedade.
O documento dimanado pela Comission Law é extenso, interessante e cheio de detalhes empolgantes. Por exemplo, sabendo que Smart Contracts são código informático, o documento prevê a possibilidade de este código ser descrito em linguagem natural (nota: para quem tiver curiosidade, o conceito de Contratos Ricardianos segue a mesma linha).
Segundo as leis da Inglaterra e do País de Gales, a formação de um contrato passa por (1) acordos claros e completos, (2) considerados pelas partes, e (3) com a intenção de criar relações jurídicas de acordo com a lei e a regulação. No seu documento, a Comission Law discute todas estas dimensões e conclui que, para o ordenamento jurídico em causa, o uso de Smart Legal Contracts é possível sem ser necessária uma reforma da legislação.
Repare-se, aliás, na nuance da palavra “Legal” na definição do conceito jurídico, pois não se fala apenas de Smart Contracts, uma vez que a palavra Contract não designa verdadeiramente um objecto jurídico, por ser um conceito puramente informático. É a palavra Legal que lhe dá esse cunho, e é uma abordagem particularmente esclarecedora.
Ao ler o documento, salta à vista o facto de ser referido explicitamente o conceito de auto-execução (self-execution), o que é raro e é de aplaudir, apesar de faltar a referência ao facto de essa auto-execução ser ecossistémica. É que qualquer computador pode ser programado para auto-executar transacções, mas só a blockchain tem propriedades para a tornar ecossistémicas.
Não obstante, a leitura do documento é suficientemente clara para que o pressuposto seja o do ecossistema em causa. Também é interessante ver discutida a problemática do pseudo-anonimato inerente à tokenização seja do que for (sendo tokenização de activos a mais comum). Essa discussão endereça, aliás, a problemática subjacente à identificação jurídica quando tal está incluída no acordo entre as partes.
A conclusão é extremamente interessante, pois fala de arquitectura de Smart Legal Contracts! Além disso, o documento também refere casos de uso emergentes, tais como o mercado imobiliário, a gestão de supply chains, seguros, e, imagine-se (!), #Defi (Decentralized Finance), entre outros. Muitos destes exemplos fazem parte da economia incumbente, o que levanta questões relacionadas com o direito de propriedade.
Assim, a Comission Law também alerta para as potenciais dificuldades nesta área do direito. De notar que o direito de propriedade inglês é eminentemente diferente do nosso e permite escriturar de uma forma a que não estamos habituados por cá (aliás, penso que é por isso que não conseguimos transpor o conceito de Trust para o nosso ordenamento jurídico).
A Comission Law conclui que um Smart Legal Contract só terá valor legal se a sua implementação estiver de acordo com a lei, que a lei actual já permite muita coisa, mas que vai ter de sofrer adaptações para promover a inovação aportada pela tecnologia (ao contrário do que às vezes se ouve por cá).
Sabendo que a Inglaterra e o País de Gales estão sob a alçada da Common Law enquanto a grande maioria dos países da União Europeia se regem pela Civil Law (nota: as excepções são a Irlanda e o Chipre), será que também é possível enquadrarmos Smart Legal Contracts na nossa lei?
Vamos ficar a ver navios outra vez, ou começamos nós próprios uma discussão que nos permita encontrar soluções para abarcar a auto-execução ecossistémica no crescimento económico, rumo à inelutável 4ª revolução industrial?
O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.