A União Europeia está neste momento a realizar uma consulta pública sobre o lançamento do Euro Digital. O objectivo do Banco Central Europeu (BCE) é lançar uma primeira versão num prazo de dois a quatro anos.

Mas afinal o que é isso do Euro Digital? Euros são euros, sejam eles manipulados fisicamente ou através dos computadores, certo? Pois parece que não.

Qualquer Euro faz parte da massa monetária posta em circulação pelo Banco Central, neste caso o BCE. Na verdade, os euros de cada um de nós representam um direito económico relativamente ao valor inscrito numa nota, moeda ou um saldo bancário. Já um cheque é um direito sobre esse mesmo saldo. O sistema financeiro está construído com um conjunto de direitos sobre direitos, tendo na base a representação de valor na forma da massa monetária. É por isso que uma evolução na base do que significa valor tem o poder de abanar todo o sistema, o que será positivo se essa evolução for bem feita.

Convém, aliás, não confundir conceito de moeda com meios de pagamento. Enquanto a moeda representa um direito económico, já um meio de pagamento é a forma de transferir esse mesmo direito. Por exemplo, o papel moeda é transaccionado fisicamente. Já uma conta bancária pode ser movimentada com meios de pagamentos como os cheques, as transferências clássicas, ou serviços como o MBway.

Assim, até há pouco tempo, havia duas formas básicas de emitir e guardar moeda, a primeira o dinheiro físico e a segunda os saldos bancários. Todas as outras reservas de valor, apesar de poderem ser medidas em euros, não fazem parte da massa monetária, desde os objectos físicos, passando pelos direitos económicos e até os títulos.

A pergunta agora é: então os euros geridos pelos computadores e com meios de pagamento digitais cada vez mais generalizados não são o Euro Digital? A resposta é não.

O Euro Digital é outra coisa, e é isso mesmo que o torna interessante. É um terceiro tipo de moeda, tão válido como os outros dois. É uma CBDC – Central Bank Digital Currency, muito à semelhança das criptomoedas, mas desta feita representando a massa monetária sob gestão do banco central em causa. Então e qual é a diferença? É simples e enorme: o Euro Digital será na mesma um saldo, mas que pode ser activado com meios de pagamento sem que esse saldo tenha de ser gerido por nenhuma entidade em particular, ou seja, é independente dos bancos apesar de digital.

Tal como um criptomoeda clássica, uma CBDC vive dentro do seu próprio ecossistema autónomo que dá suporte à massa monetária em circulação. Passa a poder ser utilizado pelos meios de pagamento que conhecemos. Por exemplo, da mesma forma que escolhemos a conta bancária a utilizar num pagamento electrónico, poderemos passar a escolher uma carteira com o nosso saldo de CBDCs. É como uma conta bancária autónoma que não precisa de banco, e isso tem imensas vantagens, acompanhadas de riscos.

O lançamento do Euro Digital vai levantar um conjunto de problemas técnicos relacionados com a disponibilidade da infra-estrutura e a sua capacidade transaccional. Assumindo que a questão técnica vai ser solucionada, sendo o Euro Digital, ele próprio um meio de pagamento, pode vir a tornar obsoleta a actual infra-estrutura de pagamentos electrónicos. A partir do momento em que os telefones celulares têm as funcionalidades dos TPAs, incluindo as comunicações, não há razão para continuarmos a usar cartões e TPAs. Aliás, é o que se passa hoje na China e noutros países, o que os está a ajudar a evoluir no sentido da CBDCs sem colocar em risco o seu sistema financeiro.

Mas há outro problema. Uma vez que o Euro Digital é massa monetária oficial do Banco Central, e se as pessoas resolvem passar a usá-lo como reserva de valor em vez de o deixarem nos depósitos bancários?

O Euro Digital pode vir a melhorar o sistema de pagamentos, mas não será essa com certeza a sua maior valia, pois, na nossa geografia esse sistema está bom e de boa saúde. Além disso, usar o Euro Digital como reserva de valor talvez também não fará grande diferença, pois a forma como guardamos valor nos bancos é suficientemente segura até aos 100.000 euros.

Não parece que haja interesse em reduzir extraordinariamente o valor do serviço dos bancos nestes dois aspectos, (i) meios de pagamento e (ii) reserva de valor, a menos que haja interesse em passar a um nível de automatização que irá originar mais despedimentos e mais concentração bancária. Então, quais serão as verdadeiras vantagens do Euro Digital? (apetece dizer para não perder as cenas dos próximos capítulos, mas não ficava bem). Agora a sério: esse será o tema da próxima reflexão.

O Euro Digital e o direito de propriedade

É ponto assente que a regulação está assente na legislação. A regulação tem acompanhado a evolução tecnológica, a qual tem feito maravilhas no que diz respeito ao uso da informação por todos os actores económicos, a começar pelo consumidor final. Inovações como o MBway ou o PSD2 são disso exemplos fantásticos, tornando o acesso à informação bancária e interligação entre todos os actores cada vez mais imediata, 24 horas por dia, a todos os títulos. Mas talvez tenha chegado o momento de rever a lei por detrás dessa regulação.

Segundo a presidente do BCE, vem aí o Euro Digital sob a forma de uma CBDCs (Central Bank Digital Currency). Esta reflexão centra-se no impacto positivo e obrigatório que o Euro Digital vai ter na legislação, e só depois na regulação. Estamos a falar do direito de propriedade. O problema vai colocar-se à escala internacional, pois a moeda é o suporte último da transferência de valor entre todas as entidades, incluindo o comércio externo.

O sistema financeiro está munido de um conjunto de medidas e ferramentas para a transferência de valor e gestão do risco, como as cartas de crédito, múltiplos tipos de garantias, instrumentos como o SWIFT, ou standards como a ISO15022. Por exemplo, as cadeias de abastecimento dependem totalmente do sistema financeiro à escala internacional e dos seus mecanismos de financiamento, pagamentos e garantias ou seguros, entre outros. É um sistema complexo que evoluiu ao longo de muitos anos, tendo acelerado recentemente com a globalização e a comunicação ubíqua. Pois o Euro Digital, e as outras CDBCs, vão ter um impacto sem precedentes em todo o sistema financeiro, sem excepção.

Tudo começa no direito de propriedade. Como já foi referido anteriormente, a moeda, em qualquer suporte, representa um direito. Esse direito é fácil de gerir se a moeda for física, pois a sua posse é tangível. Neste caso, o direito é exercido através da posse do objecto que a representa, seja uma nota ou uma moeda. Já no caso da informática, a questão é diferente. Tão diferente que os depósitos nos bancos europeus estão salvaguardados como direito apenas até aos 100.000 euros por conta bancária… Então somos proprietários de quê quando os direitos estão armazenados em bits e em bytes? Pois bem, depende.

O direito de propriedade difere nos vários ordenamentos jurídicos e isso vai ter impacto na forma como cada CBDC vai evoluir em cada geografia. A esse respeito, acredito que a Common Law vai ter muito mais facilidade em se adaptar, porque a propriedade nos países essencialmente anglo-saxónicos inclui direitos, enquanto que, no ordenamento romano-germânico como o nosso (Civil Law), são os contratos que estabelecem a propriedade, e os direitos estão reflectidos nesses contratos. A diferença é, portanto, abismal, e é por isso que o conceito de “trust” tão comum na Common Law não tem lugar na nossa geografia. Já há aliás jurisprudência na Common Law, neste caso em Singapura, que considera as criptomoedas clássicas passíveis de serem consideradas propriedade.

Mas esta posição está longe de ser consensual. Na Alemanha, a legislação aprovada no ano passado requer que as criptomoedas tenham custódia e o mesmo parece estar a acontecer na proposta de lei avançada em Setembro passado na União Europeia. A legislação em causa na UE não abrange, portanto, os direitos inerentes ao próprio activo sem que estes estejam à guarda da entidade que os executa, ou seja, pressupõe uma custódia do activo digital. Ora esta abordagem não funciona para as CBDCs, pois, por definição, para este terceiro tipo de moeda, a custódia não pode ser obrigatória. Vejamos porquê.

O problema reside na intangibilidade do direito associado à moeda. A moeda física é fácil de gerir, pois a representação da moeda é ao mesmo tempo um direito e um meio de pagamento. Mas quando esse direito é registado num meio intangível como uma conta bancária, a legislação actual define que esse mesmo direito está associado a quem detém a sua custódia. Mas o Euro Digital não é nada disso, pois não precisa, nem pode precisar, de custódia nenhuma.

Dentro do seu ecossistema, o Euro Digital tem vida própria enquanto moeda, apesar de poder beneficiar dos sistemas de pagamento em vigor, e de outros que vão poder ser desenvolvidos, dada a natureza diferente deste terceiro tipo de moeda. Precisamos então de legislação que reconheça o Euro Digital como moeda de pleno direito e independente dos sistemas informáticos que suportam o sistema financeiro actual, pois as leis vigentes lidam bem com sistemas de pagamento, mas não com este novo tipo de moeda.

Em suma, parece-me que o primeiro impacto mais importante do Euro Digital vai ser obrigar a legislação a evoluir à escala europeia, o que é bom, de forma a reconhecer a propriedade dos direitos registados num meio informático baseada em DLT (Digital Ledger Technologies, como a Blockchain). As verdadeiras vantagens económicas do Euro Digital virão da evolução da legislação em primeiro lugar. A nova regulação virá depois e também será tema de reflexão, pois um novo mundo se abrirá quando isso acontecer, e vai acontecer.

O Euro Digital e a gestão da massa monetária

Com a consulta pública da União Europeia em curso sobre o Euro Digital, é natural que o projecto vá mesmo para a frente. Aliás, as CBDCs (Central Bank Digital Currencies) não são novidade. A China já anda a falar disso há muito tempo, parece que já lançou um beta-teste em Maio deste ano e promete lança-la a sério nos próximos jogos olímpicos de inverno em Pequim. Acreditamos que sim, pois é um país onde um bilião de pessoas já utiliza meios de pagamento móveis – WeChat e AliPay – semelhantes ao MBWay, com a diferença de que não há taxas e está completamente vulgarizado, mesmo para comprar o jornal, pagar um Taxi ou um parque de estacionamento.

Para a China, passar de um sistema de pagamento electrónico da moeda tradicional para uma CNBC, é essencialmente um problema de legislação, com algumas componentes tecnológicas relativas à disponibilidade transacional e aos porta-moedas. Como na China há essencialmente os dois sistemas referidos, a vulgarização pode ser imediata. Mas a China não foi a única a dar passos nesse sentido. A Suécia com o e-Krona, a Ucrânia com o e-hryvnia, entre outros, já fizeram pilotos e estão a avançar. A Europa não podia ficar para trás.

O Euro Digital é mesmo uma forma de emitir moeda, com a vantagem de simplificar extraordinariamente os sistemas de pagamento pois a sua gestão já inclui esse mesmo sistema. Isso não quer dizer que não possa ser utilizada também através dos actuais processadores de pagamentos, tais como a SIBS ou a Visa, o que aliás é bom do ponto de vista da compatibilidade, pois é importante não criar disrupção nesta indústria crítica. Mas não é a questão da desintermediação bancária ou dos sistemas de pagamento que queremos discutir, mas sim a gestão da massa monetária.

A massa monetária em circulação é aquela necessária ao suporte da economia, garantindo valores saudáveis de inflação. Digo saudáveis por duas razões. Em primeiro lugar porque não gostamos de deflação. Em deflação, ninguém tem interesse em gastar dinheiro pois, quando mais tarde o gastar, mais barato vai ser. Viva, portanto, a inflação (!), e agora vem a segunda razão. Se a inflação for demasiado alta, o melhor é gastar logo o dinheiro todo. Por exemplo, é sabido que durante a república de Weimar, ou no Brasil nos tempos de hiperinflação, o dinheiro do ordenado era gasto no dia, caso contrário tudo estaria mais caro, às vezes apenas umas horas depois.

Ora a inflação está intimamente relacionada com a massa monetária. Numa economia, se tivermos o dobro da moeda em circulação para transacionar as mesmas coisas, elas vão custar o dobro em moeda, apesar de o valor económico ser o mesmo.

Estamos agora a viver um momento de taxas extremamente baixas, ou mesmo negativas. Mas o que significa uma taxa negativa e o que tem isso que ver com o Euro Digital?

Enquanto o dinheiro em papel vale o que vale, já os euros nos computadores podem ser remunerados positiva ou negativamente. Podem utilizar-se taxas negativas para ter o mesmo impacto da boa inflação, de forma a incentivar a aplicação produtiva do dinheiro.

Acontece que é permitido o refúgio dos bancos no dinheiro físico, o que evita as taxas negativas por parte das entidades que tenham de aplicar a sua liquidez dessa forma. Esta é uma das situações em que a política monetária pode beneficiar com o Euro Digital. Uma moeda tokenizada tem vida própria e pode ser remunerada positiva ou negativamente com facilidade. Mais ainda, é até possível inserir mecanismos automáticos de controlo de lavagem de capitais sem que para isso seja necessário forçar entidades específicas, leia-se bancárias, a incluir essas actividades na sua compliance.

Além disso, a partir to momento em que os Euros Digitais façam parte integrante do sistema legal e financeiro, é possível começar a escalar o seu impacto em todos os activos incorpóreos cuja definição inclua direitos e valorização. É um assunto a que voltaremos em breve.

O Euro Digital tem, portanto, vantagens potenciais enormes para os bancos centrais, não estando isentos de risco para a banca e os outros actores do sistema financeiro em geral. É portanto importante participarmos na consulta pública sobre o Euro Digital e contribuir para a discussão.