Como sempre, em matéria de aviação existem duas versões: a dos políticos para quem todos os milhões têm sido poucos e insuficientes quando se trata de injetar quantidades astronómicas de dinheiro público em companhias aéreas; e existe a versão do mercado, aquela que avalia a situação financeira e faz uma análise jurídico-comercial de qualquer investimento com a racionalidade e a objetividade exigidas por um conselho de administração ou por uma assembleia de acionistas.

O processo de privatização de uma companhia aérea corresponde àquele momento tão esperado de confronto e de cruzamento entre estas duas versões numa verdadeira “prova dos nove” imune a comissões parlamentares e afins. Chegado o momento em que o discurso populista sobre as companhias aéreas desencanta a maior parte dos eleitores e se transforma num ativo tóxico para qualquer reeleição, os políticos apressam-se a chamar os privados à mesa das negociações com o objetivo de lhes passar o fardo, não sem antes apresentarem uma série de exigências – ora utópicas, ora desnecessárias, ora extamente o oposto do que fizeram enquanto a companhia era do Estado e sob gestão pública.

No caso português, e contrariamente ao que tem sido por vezes dito, a privatização das companhias aéreas estatais não corresponde a nenhuma exigência da Comissão Europeia; é, sim e tão-somente, um desígnio eleitoral de ambos os governos – do central relativamente à TAP que deixou propositadamente a privatização de fora do plano de restruturação; do governo regional relativamente à Azores Airlines que decidiu voluntariamente incluir essa privatização no seu plano apresentado em Bruxelas.

Eis-nos então chegados ao primeiro concurso público para privatizar uma das quatro companhias aéreas detidas pelo Estado português, neste caso a Azores Airlines. A primeira ronda deste processo terminou com uma certeza e com uma dúvida.

Das mais de 30 entidades que pediram para consultar o processo, apenas duas nacionais apresentaram uma proposta – esta estatística é, só por si, reveladora. É certo que prazo político – demasiado curto para uma avaliação séria e escrutinada desta companhia com apenas 8 aviões – não terá jogado a favor, mas pelo caminho foram partilhados todos os “segredos” da empresa – mesmo aqueles dignos do computador de Frederico Pinheiro.

Por coincidência, no final, ambos os consórcios nacionais interessados atribuíram exatamente o mesmo valor à Azores Airlines: 6,5 euros por ação. Isto significa que, em ambos os casos, o valor líquido total da companhia cifra-se em apenas 6,5 milhões de euros.

Para termos uma noção da relação de valores: a Azores Airlines faturou 211 milhões de euros em 2022 , o equivalente a 30 vezes o valor atribuído e, mesmo assim, deu um prejuízo de 30 milhões; o governo regional injetou 453 milhões no Grupo SATA da Azores Airlines em 2020; só a título de compensações financeiras a fundo perdido em virtude dos prejuízos incorridos entre 19 de março e 30 de junho de 2020, o governo regional autorizou a concessão de 8,1 milhões de euros à Azores Airlines.

Todos estes milhões nunca mais serão recuperados pelo contribuinte comum, aquele que vê as prioridades educativas, de saúde, de justiça e de ambiente constantemente adiadas por “falta de recursos”.

Em razão da coincidência do (baixo) valor atribuído pelos dois únicos interessados, o concurso público de privatização da Azores Airlines foi prolongado, numa espécie de equivalente a uma segunda volta eleitoral. Teremos, por isso, de esperar mais algumas horas até vermos esclarecida a dúvida que ainda paira: quem, afinal, dá menos pela Azores Airlines, a maior companhia aérea do Grupo SATA e aquela que liga o arquipélago ao Continente, à diáspora e a alguns mercados europeus, com uma frota de oito aviões?

Ainda que assumindo o enorme passivo da empresa, a verdade é que a Azores Airlines, a posição geográfica no meio do Atlântico, o seu destino turístico, a bandeira regional, o negócio da diáspora, tudo isso junto e acrescentado das adjetivações políticas e dos revanchismos caravelísticos, tudo isso junto, no mercado global da aviação, vale muito pouco. E este desfazamento cada vez maior entre política e realidade, entre políticas públicas e sociedade é, no mínimo, assustadoramente preocupante.