“A boa educação fica com quem a usa”, sempre me diz a minha mãe. Será uma máxima que ninguém ensinou a José Berardo, ou que ele talvez terá dado como colateral num dos empréstimos de milhões que lhe concederam. Este benfeitor da vida cultural e financeira do nosso país brindou-nos, na passada semana, com um show bem ao seu estilo, que só surpreendeu e “chocou”, como disse o primeiro-ministro, quem não o conhecia ou, pela sua ausência da ribalta nos últimos anos, se havia esquecido da postura da peça em causa.

Claro que é revoltante e nojento o desplante do comendador José nas afirmações que faz de “pessoalmente, não tenho dívidas” ou aquele riso sarcástico e refastelado num cenário sério, onde se apuram responsabilidades sobre facturas exorbitantes que, invariavelmente, sobram para os contribuintes.

Mas, avaliando com frieza, qual será a diferença, no âmago da questão, entre este grosseirismo e as selectivas e surpreendentes perdas de memória de gestores de topo, homens pagos a peso de ouro pela sua capacidade de liderança e gestão que, quando confrontados com perguntas incómodas, têm ataques de amnésia? Ou entre as defesas do bom nome e da honra própria de outros que, com mais ou menos articulação nas palavras, se fazem de coitadinhos depois de destruírem milhões de euros em negócios ruinosos e obscuros?

A mim enoja-me mais a hipocrisia dos parlamentares (e, portanto, legisladores), que, dispondo de mais recursos e sendo eleitos para legislar a fim de tornar o país mais eficiente e justo, só agora parecem ter-se apercebido da salganhada que se passou com Berardo. Algo que vários jornais noticiaram várias vezes ao longo da última década, fosse ao nível do buraco financeiro que deixou o negócio, do mau acordo que havia feito o Estado com a exposição no CCB ou da improbabilidade de se conseguir penhorar as obras de arte do empresário.

São estes mesmos parlamentares que se tornam coniventes ao não criarem legislação adequada relativamente ao sector financeiro e não apertarem o cerco à fuga de responsabilidades individuais através do escudo de sociedades, como o fez Berardo, ou ao não tornar mais sério o estatuto de IPSS, de forma a que palhaçadas como a que ocorria na Fundação do madeirense não fossem toleradas – esta estava obrigada a prover “habitação, sustento, despesas com saúde, com educação, com alimentos, demais despesas e encargos do fundador, do seu cônjuge e dos seus dependentes”.

Este episódio é só mais um reflexo da promiscuidade entre a banca e o poder político, que permitiu empréstimos absurdos e altamente prejudiciais para o país.

Como é possível conceder mil milhões a um indivíduo para este comprar um banco? Pior, perante garantias que não cobriam nem 25% do valor do empréstimo? E contra pareceres da comissão de avaliação de risco do banco credor? Onde andam os gestores que facilitaram estes negócios, e porque não são eles também responsabilizados pelos danos causados às finanças públicas?

E porque não se revoltou José Miguel Júdice por não serem retiradas as condecorações a Carlos Costa, Américo Amorim, João Pereira Coutinho, Hélder Bataglia ou António Nogueira Leite, só para nomear alguns dos envolvidos, seja como devedores ou como gestores da CGD, nos 25 créditos mais ruinosos para o banco estatal? Se calhar, José Miguel Júdice anda esquecido dos seus laços a João Rendeiro e de como, em todo o rigor, tais provavelmente não sejam os “serviços relevantes” que a Ordem do Infante D. Henrique visa distinguir.

Como resume brilhantemente Paulo Ferreira, “um calote de mil milhões ainda vá que não vá. Mas um “ah-ah-ah” pausado de escárnio ninguém pode deixar passar impune”. Porque, aparentemente, o que qualifica malfeitores para perderem condecorações não é o acto de prejudicar o país, aldrabando, dissimulando e mentindo, mas sim rir-se disso – e logo eu que pensava que éramos um povo com sentido de humor.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.