A carta aberta em que António Costa responde a Manuel Alegre arrisca-se a ficar na história do pensamento político.

Os portugueses são de facto os melhores, apesar do reduzidíssimo número de prémios Nobel.

Mais de quatro séculos transcorridos sobre a obra de Shakespeare que retrata o angustiante dilema vivido por Hamlet no Castelo de Elsinore, António Costa consegue, finalmente, ser e não ser ao mesmo tempo.

Concretamente, consegue ser e não ser contra as touradas.

É contra as touradas porque não gosta delas (não obstante já ter sido avistado a assistir a algumas ao vivo e sem o semblante demasiado carregado). Mas ao mesmo tempo é a favor delas, em nome desse valor superior que é a Liberdade de quem aprecia as ditas.

Rejeita a tourada como “manifestação pública de uma cultura de violência ou de desfrute do sofrimento animal”, mas descansa todos os aficionados com a curiosa metáfora de que jamais será um “mata-toureiros”.

E vai mais longe, sufragando a tese de que as touradas são de facto uma questão de civilização, tal como afirmado pela sua ministra, mas quem é a favor da causa taurina também não deve ser desqualificado como incivilizado.

Há portanto, na nossa sociedade, duas (ou mais) civilizações distintas que, em vez de chocarem entre si – como achava inevitável o pouco recomendável Huntington ‒, devem antes dialogar.

E com este cristalino raciocínio consegue, espera ele, ganhar os votos de uns, sem perder os votos de outros. Uns vivem na esperança que os outros ainda não perderam.

De registar ainda que, pelo meio da carta, o PM confessa-se um aristotélico ‒ quando afirma que, por formação e personalidade, tende à moderação ‒, com o mesmo à vontade com que reconhece que pode mandar na programação do serviço público de televisão: “choca-me que o serviço público de televisão transmita touradas. Mas não me ocorre proibir a sua transmissão.”

Aqui fica, para memória futura, esta nota para quando a RTP deixar de patrocinar e difundir a grande corrida TV. Mais dispensáveis, na narrativa da epístola, serão porventura as referências à mutilação genital feminina, à pornografia, e ao consumo do sal e do açúcar.

Por todas estas razões, António Costa, em coerência, anuncia com frontalidade a sua decisão de nada decidir sobre o assunto. Não decide, nem convoca um referendo para decidir, com o sintético argumento de que este seria “extemporâneo”.

Em todo o caso, não lavou as mãos como Pilatos, porque chuta a decisão para os 308 municípios portugueses ‒ assim se contrariando a ideia de que a descentralização ia ficar na gaveta.

Enfim, um pequeno marco histórico da teoria política, que só não ombreia com as cartas sobre a tolerância de Locke ou a obra de Mill sobre a liberdade porque o “sossego de um voo até Berlim” não dá para mais!