A fotografia de Mahmoud Ajjour sobre Samar Abu Elouf, um rapaz de nove anos de Gaza que ficou sem os seus braços durante um acto de fuga a um ataque de Israel, em Março de 2024, convoca-nos para uma reflexão sobre a nossa essência humana no presente. Hoje, o direito de matar e de viver já não se situam fora do espectro da actuação política contemporânea, tendo deixado de ser um fenómeno excepcional para passar à categoria do normal.

Esta dimensão do exercício do poder político – decidir sobre a vida e a morte – não constitui, em si, uma novidade do ponto de vista histórico e até político. Passou, sim, a ser uma forma de actuar nos contextos dos conflitos depois da Segunda Guerra Mundial, sobretudo na realidade africana com a constituição da zona de indistinção. Para Mbembe, no seu ensaio intitulado de Formas Africanas da Escrita de Si, “trata‐se de um espaço fora da jurisdição humana, onde as fronteiras entre a lei e o caos desaparecem, as decisões sobre a vida e a morte se tornam totalmente arbitrárias e tudo passa a ser possível”.

Mbembe já manifestava uma preocupação intelectual e académica em situar esse campo de actuação do poder político contemporâneo como desprovido de limites humanos, enquadrando-se numa jurisdição excepcional da dimensão humana. Contudo, é na sua obra Necropolítica que estabelece com maior precisão esse campo, afirmando mesmo que “a forma mais bem-sucedida de necropoder é a ocupação colonial contemporânea da Palestina”. Trata-se de um contexto onde a legitimidade do Estado ocupante assenta no sagrado, e não na vontade humana dos seus cidadãos, sendo a necessidade da ocupação justificada como uma reconstituição das Escrituras Santas.

Se a vontade de ocupação de um território, como a Palestina, não resulta de uma decisão humana, mas, antes da necessidade de cumprimento de um acto sagrado. Impõe-se, assim, questionar: onde se situa o humano nessa forma de fazer política? A dimensão humana, enquanto exercício de vontade e de condicionamento da acção do poder político, revela-se limitada, e é cada vez menos expressiva e incapaz de obrigar a uma condução digna da tomada de decisão, no qual o ser humano deveria ser a pedra angular da vida em comunidade, obrigando todos a um compromisso moral.

Portanto, os braços “destruídos” do Samar Abu Elouf são, em última instância, o reflexo da nossa inércia e da amnésia colectiva que nos permite delegar o grau de responsabilidade moral de agir. Essa apatia sustenta o direito à hipocrisia de premiar o horror colectivo que entra pela nossa casa todos os dias e não nos leva à rua em defesa das vidas humanas. É por nós que a Necropolítica se operacionaliza e mantém activa.