É sempre difícil tirarmos as medidas às mudanças que acontecem no nosso tempo. A hiperindustrialização contemporânea transbordou há muito da indústria dos objectos, industrializando a vida animal, os ecossistemas, as paisagens turísticas, com todo o perigo que isso implica do ponto de vista da sustentabilidade do planeta e das razões de uma convivialidade melhor. Mas hoje temos também uma indústria das subjectividades, que produz intensivamente desejos, emoções e crenças para massas de consumidores, como se produzisse carros, e que as engorda e igualiza como frangos ou fruta normalizada.

Em “A Grande Transformação”, Karl Polanyi perguntava “Que ‘moinho satânico’ foi esse que triturou os homens transformando-os em massa?”. A mesma pergunta tem agora de ser formulada com o foco nas subjectividades – que moinho satânico as triturou e delas faz massa?

1. A industrialização da subjectividade

A industrialização da subjectividade faz da matéria interior de que somos feitos uma massa uniforme de extracção de riqueza. A posição do sujeito consumidor enquanto fim que a produção satisfaria deslocou-se para a de meio de produção, tornando-se a própria produção no fim a satisfazer. Ser meio já não significa apenas ver instrumentalizadas as necessidades de consumo para alimentar uma produção imparável. Ser meio passou a significar o sujeito consumidor ter a sua subjectividade transformada em chão de cultivo e extracção de riqueza.

A inversão dos meios e fins completa-se quando, sem que reajamos, as subjectividades deixam de ser primariamente consumidoras, para passarem a ser consumidas, como um recurso de que se extrai riqueza.

O convite a ingressar gratuitamente nas redes sociais e por lá permanecer tem sido sobretudo o transporte, a que as subjectividades acedem voluntariamente, para os lugares mais eficientes desta produção. A aceleração do tempo social optimiza a subjugação das consciências a um regime de permanente e inescapável reacção a estímulos. Assim normalizam-se as subjectividades e comprime-se a sua autonomia ao longo do tempo, agarradas a um presente reactivo, empurrando para o lado, recalcando, esquecendo todos os demais aspectos da vida de uma subjectividade, como se fossem restos.

Até há relativamente pouco tempo, as opiniões dividiam-se, também ideologicamente, sobre quem deveria ser o sujeito da acção política e da história humana. Seriam pessoas individualmente, mesmo se umas mais outras menos? Identidades constituídas em torno de uma visão de bem, um conjunto de valores, uma moral, religiosa ou laica? Minorias, outras identidades, constituídas em torno de uma história de discriminação? Uma classe social, ou duas, em luta? O povo que dantes se dizia que unido jamais seria vencido, ou uma multidão de diferenças quantas mais melhor pois mais capazes de gerar o novo?

Hoje, porém, as perguntas são outras, inquietantes: não que sujeito queremos ou podemos ser, mas se ainda temos a capacidade de nos constituirmos como sujeitos? Ainda somos sujeitos? Sim, obviamente ainda conseguimos sê-lo, ou já não teríamos a capacidade de fazer estas perguntas. Mas até quando será assim? E o que já vamos perdendo numa transição que, apesar de não ser instantânea, é tão súbita?

Para estas perguntas, concorrem pelo menos outros dois fenómenos de tremendo alcance que também comprometem a possibilidade de ser sujeito. Por um lado, os poderes dantes contidos numa subjectividade vão sendo dispersados, expelidos, reduzindo-a à condição de mera membrana sensível de reacção a estímulos. Por outro lado, uma desalterização progressiva da existência sobrevém à sociedade hipermedializada. Vejamos os dois casos e como interdependem um do outro.

2. O derrame dos poderes da subjectividade

É conhecida a crítica que Hannah Arendt apontou, com algum horror, a Jean-Jacques Rousseau por ter cindido cada pessoa entre o cidadão sujeito da vontade geral e o indivíduo sujeito de vontade particular. Com isso, o autor de “O Contrato Social” trouxe o conflito político para dentro da nossa interioridade. Mas se Arendt adivinhava aqui um risco de totalitarismo, o horror que se perspectiva agora é o inverso: não a internalização do conflito numa hipersubjectivação que faz Rousseau conter no mesmo peito o pulsar do cidadão e o do indivíduo, mas uma subjectividade cada vez mais despojada dos seus poderes e da sua autonomia.

Os desejos industrialmente produzidos passaram a preceder o acto subjectivo de desejar, doravante assistido por essa produção que lhe é alheia, como se tivéssemos de respirar por meio de um dispositivo de ventilação assistida, apesar de respirarmos bem. Além do desejar, também a memória se industrializa no seu duplo poder de esquecer e recordar, tornada parte de um dispositivo de produção que de novo precede o exercício individual da memória, para de novo impor um regime de assistência.

Quem se recorda de um número de telefone desde que os telemóveis guardam os contactos? Restam-nos os das casas dos pais e avós apesar de não os discarmos há décadas. Ganhámos mais acesso a contactos, mas sabemos menos números de telefone. E este é um padrão para todos os outros poderes dantes reunidos numa subjectividade.

Como os telemóveis, os motores de pesquisa destreinam a memória, tornando a assistência uma necessidade real. Além disso, substituem os equilíbrios naturais, que são também culturais, entre recordação e esquecimento, por outros equilíbrios que um design pensou, com finalidades e associações que a maior parte das vezes não conhecemos.

Este derrame dos poderes da subjectividade ganha uma nova escala com a machine learning e o uso do enorme manancial de dados proporcionados pelas grandes empresas tecnológicas. Num recente documentário da Netflix – “Preconceito codificado” (“Coded bias”, 2020) – são relatadas decisões com impacto na vida de pessoas – por exemplo, alcançar ou perder uma posição profissional – tomadas por algoritmos evoluídos por auto-aprendizagem.

Não é apenas o juízo ser tomado por um algoritmo, mas a própria formação desse algoritmo resultar fora de uma consciência humana. Ao mesmo tempo, é explicado como os big data que informam o processo de machine learning são esponjas que absorvem todos os vieses e preconceitos disseminados numa sociedade. Os big data só se alimentam do passado. O resultado é algoritmos que são tão filhos da Inteligência Artificial (IA) como da segregação. Por exemplo, softwares de reconhecimento facial que não reconhecem tão bem negros como brancos, ou que imputam rótulos de sociabilidade, marginalidade com base na cor da pele, na etnia, no género.

O sistema de crédito social chinês horroriza pelo seu aspecto distópico, mas é apenas mais uma dimensão do derrame dos poderes da subjectividade. O juízo pessoal de confiança sobre alguém é transferido para um sistema impessoal que recolhe dados, os processa e os transforma numa pontuação social.

Finalmente, o poder da atenção é dispersado numa torrente de estímulos a exigirem constantemente que se reaja. Sem soberania sobre a sua própria direcção, a atenção é capturada por interesses que precedem e assistem o seu próprio movimento, e que hoje em dia são agregados sob a designação de capitalismo da atenção.

A ambiguidade permitiria dizer que são capacidades nossas que estão a ser estendidas, mas, na realidade, ao derramá-las para dispositivos e tecnologia de IA, o seu ponto de referência está a ser dissolvido, bem como a sua autonomia. As capacidades são estendidas, mas são cada vez menos nossas. Os poderes da subjectividade são cada vez menos soberanos sobre o que desejamos, o que esquecemos, o que recordamos, as associações de ideias que fazemos, o que pensamos, o que julgamos, o que confiamos.

Tudo isto é novo, mas, ao mesmo tempo, sempre esteve no projecto da modernidade: trair-se o seu ideal fundador de autonomia. Foi precisamente a soberania subjectiva que começámos por largar quando cedemos a uma razão instrumental. Uma razão instrumental é um instrumento de produção, ou melhor, um meta-instrumento que cria todos os instrumentos e adapta a essa condição todas as realidades com potencial instrumental. Desde então, a razão abdicou da tarefa da procura dos fins para se dedicar à tarefa da descoberta dos meios, pondo-se ela mesma como o meio por excelência, meio de todos os meios.

Em contraste com a fórmula habitualmente distintiva dos fins – ser fim em si mesmo –, a racionalidade moderna, instrumental e instrumentalizadora, institui-se como meio em si mesmo, que é como ser o anti-fim.

3. A desalterização

Na sociedade hipermedializada, naturalizou-se um recuo da existência das pessoas para dentro de uma esfera própria, uma bolha a partir da qual interagem com o mundo e com as outras pessoas. Vai-se preferindo, por exemplo, o texting oralizado à voz própria, um primeiro encontro amoroso à distância. E, antes disso, vai-se desejando conhecer outros dessa maneira, de acordo com uma sociabilidade esperada, uma codificação, um filtro, um algoritmo.

Os adolescentes antecipam a erotização da imagem de si próprios que veiculam nas redes sociais. Os encontros não-medializados, sem algoritmo subjacente, a acontecer face a face, ao alcance das mãos e do toque do outro, passaram a ser demasiado mundo de uma só vez. Tudo demasiado ameaçador, a justificar que nessas mediações e na aprendizagem do seu manejo hábil se constituam as defesas de um eu que de outro modo se representa demasiado vulnerável.

Ironicamente, essa vulnerabilidade tem sido a arma, demasiado poderosa, que erradica do mundo o regime de existência selvagem. Seja na natureza, nos outros ou dentro de cada um, a possibilidade da alteridade é reprimida, até violentamente, com base numa auto-representação da hipervulnerabilidade de cada um.

Mas a desalterização não é apenas perante os outros diante de nós. Também rarefaz as condições de possibilidade de uma transformação ou transição epocal, condenando-se a uma imobilidade, para que contribui, paradoxalmente, a aceleração social. Quão mais acelerados os tempos, assoberbados até à exaustão num regime de existência, menos esta se abre e se dispõe à mobilidade.

Em tudo isto há um auto-engano, uma mentira a si. Para empregar um conceito célebre do existencialista Jean-Paul Sartre, a modernidade hipermedializada e acelerada está de má-fé consigo própria, a mesma má-fé que inflaciona a sensibilidade ao risco e à exposição, ou que nos fez confinar as crianças antes de qualquer confinamento e a aceitar de bom grado a cultura do écran, ou ainda, a não admitir, nestes dias, uma vacina por conter uma margem de risco que não andará longe da que corremos ao atravessar uma rua movimentada.

Seja com o mundo, com os outros, connosco mesmos, o desafio relacional é difícil, de desfecho aberto e com riscos. Essa abertura não é sinal de impotência e perda, mas de um sentido da alteridade, relação e coexistência. Esse convívio exige-nos, porém, que as subjectividades não percam a sua autonomia, não deixem de ser o ponto de referência das suas próprias vidas subjectivas, independentemente de forças que tudo procuram industrializar. Subjectividades não derramadas e menos industrializadas conseguirão conviver melhor.

De outro modo, numa fragilidade magnificada, dada à auto-vitimização, desalterizam em direcção a um mundo de não reconhecimento, ressentimento e intolerância de que vamos tendo notícia diária.

Este é ainda um caminho de modernidade porque guiado pela ideia de autonomia. Por isso, a pergunta não pode ser se fomos demasiado modernos, nem, pelo contrário, se não fomos suficientemente modernos. Provavelmente fomos ambas as coisas e há que fazer escolhas críticas. O que nos exige não perdermos a capacidade de as fazer, de ser sujeitos.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.