Angela Merkel está prestes a passar o testemunho como chanceler da Alemanha, após 16 anos à frente do governo do maior país da União Europeia. Ainda é cedo para fazer um balanço objetivo dos longos mandatos da chanceler, mas desconfio que dentro de alguns anos muita gente terá saudades de Merkel, incluindo aqueles que em Portugal a criticaram durante os anos difíceis da crise do euro.

Vale a pena destacar duas grandes áreas onde Angela Merkel tem desempenhado um papel fundamental.

A primeira é a defesa dos valores democráticos e humanistas. Num mundo governado por políticos sem grande substância e onde abundam a demagogia e o populismo, Merkel distingue-se pela sensatez, pragmatismo e estilo tranquilo de liderança. Mas sobretudo diferencia-se da maioria dos governantes atuais pela defesa corajosa de princípios fundamentais, por vezes remando contra a corrente e correndo riscos políticos. Como filha de um pastor luterano na antiga RDA, que viveu até à idade adulta sob um regime opressivo (tinha 35 anos quando caiu o Muro), Merkel sabe o que é viver sem liberdade.

Talvez por isso, quando outros líderes vacilaram em questões fundamentais, esteve quase sempre do lado certo da História, opondo-se aos totalitarismos, aos extremismos, à xenofobia e à intolerância.

De facto, como chanceler, Merkel desagradou sobretudo aos extremos: por exemplo, foi muito criticada pela extrema-esquerda por se ter envolvido pessoalmente na atribuição de um prémio ao dinamarquês Kurt Westergaard, o autor das célebres caricaturas de Maomé, que foi durante anos perseguido por fundamentalistas islâmicos, considerando-o um defensor da liberdade de expressão; ao mesmo tempo, ficará para a História como a chanceler que abriu as portas do seu país a mais de um milhão de refugiados do Médio Oriente, desagradando a parte do seu próprio eleitorado e transformando-se numa figura odiada pela extrema-direita. Aos críticos, respondeu que o país tinha capacidade e interesse em integrar aquelas pessoas, para fazer face ao declínio demográfico. E acrescentou: “o problema da Alemanha não é islão a mais, mas sim cristianismo a menos”.

A segunda área onde Merkel se tem distinguido é a defesa do projeto europeu, de cujo sucesso depende o futuro da Alemanha. Podemos dizer que ambos estão hoje mais fortes do que eram quando tomou posse, apesar dos muitos desafios dos últimos 16 anos, como a crise da dívida soberana, a ascensão dos populismos, o Brexit e a pandemia de Covid-19. Merkel desempenhou um papel chave em todos esses momentos, quase sempre para melhor. Com pragmatismo, soube fazer os compromissos necessários para preservar o projeto europeu, face às objeções dos “falcões” do seu país. Procurou ainda reformar o modelo social europeu, defendendo numa célebre entrevista ao “Financial Times” que a União Europeia tem apenas cerca de 7% da população mundial e representa 25% do PIB global, mas é responsável por 50% dos gastos em apoios sociais, o que não é sustentável se quiser competir com as potências emergentes. “Todos nós teremos de parar de gastar mais do que ganhamos todos os anos”, defendeu na ocasião.

Na política externa, a chanceler foi europeísta sem deixar de ser atlantista e patriota sem cair no egoísmo nacionalista, defendendo os interesses do seu país face aos EUA, à Rússia e à China.

Não por acaso, a “The Atlantic” chamou-lhe a estadista mais bem-sucedida do nosso tempo, “em resultados alcançados e longevidade”. E não é difícil imaginar o que poderia ter corrido mal se o lugar de chanceler fosse ocupado por alguém com um perfil diferente.