Haverá, pelos dias de hoje, um pouco mais de 300 milhões de xiitas em todo o mundo. Eles são relevantes em muitos países árabes, mas são determinantes no Irão, onde atingem mais de 90% da população.

É exatamente por isso que elegemos Khamenei, líder supremo iraniano e antigo Presidente da República, como a maior referência deste lado tão interessante e motivador da investigação histórica do islamismo.

Os ocidentais construíram uma imagem terrífica dos iranianos depois da fuga do xá Reza Pahlavi nos inícios de 1979. Só restou, para a nossa memória, um regime afirmado nas leituras restritas do Alcorão, minado pela irremediável adversão ao desenvolvimento social e cultural.

Não se promoveram os acertos de contas sobre a realeza finda, a sua impressionante forma de tutelar a sociedade, de a limitar nas liberdades e de a desnatar dos seus recursos em proveito de poucos.

Em 1979 cessaram séculos de monarquia ininterrupta que vinha desde a proclamação do Império Persa. E nasceu o Irão novo, marcado pela imposição da presença singular de uma liderança política e religiosa contidas no mesmo símbolo.

Khomeyni, o exilado que assumiu a revolta contra o xá, construiu uma receita simples aos olhos dos mestres da manipulação de massas. Os EUA, enquanto fonte de todo o mal, assumiram a luta aberta, receberam os mais variados tipos de ação terrorista. Era um tempo.

Em boa verdade, esse tempo só estava a acontecer dez anos depois de maio de 1969, por essa Europa fora, quando as liberdades várias se expunham, olhando o outro lado de uma cultura ocidental muito limitadora. Apareceu-nos uma espécie de tenaz que apertava as mentes e as criações ocidentais, que as questionava, o que foi muito relevante para a construção, em cerca de 30 anos, da fortuna europeia, fortuna que viria até à emergência do capitalismo neoliberal e à globalização financeira e tecnológica.

Quando olhamos o islão xiita perguntamos sobre a lógica de manter uma leitura hereditária das orientações teológicas, uma descendência obrigatória do início para poder proclamar-se o verdadeiro caminho. Essa linha é resultante do facto de se considerar que o Anjo Gabriel atribuiu a Muhammad um poder único e que só ele o poderia substabelecer.

Abu Bakr recebe a incumbência de consolidar o novo caminho, de formatar a sua expansão, de progressivamente consagrar ordem administrativa e poder real a muitas das subunidades que seguiam o fundador.

Entre o século sexto e o século décimo DC os muçulmanos foram imparáveis na conquista, na criação de riqueza e no desenvolvimento tecnológico. Tais circunstâncias concederam uma espécie de supremacia, até sobranceria, que também se afigurou fatal quando cristãos seguidores de Roma iniciaram a libertação de Jerusalém e encetaram as Cruzadas. Não mais se parou um dia para se fazer haver paz e concórdia.

Há uma questão que atravessa os debates políticos e teológicos no mundo de hoje. Ela prende-se com a constatação da realidade e é ainda implicada pelas visões primárias do Alcorão e da Sharia.

Dizem alguns que a Sharia é mais recuada que a visão implicada pela Lei Islâmica, que esta última ponderaria as transformações das sociedades. Não há qualquer fundamento nesta segregação. Tanto o Alcorão como a Sharia ou a Lei Islâmica devem ser avaliados pelos tempos, atualizados pelas realidades. E sobre isso os líderes xiitas não se proclamam mais reacionários.

Quando os católicos transformam pontífices anteriores em santos, quando lhes beijam as mãos em imagens, mais não fazem do que consagrar uma leitura de interceção. Não é, pois, de desligar esta visão da que concede ao aiatola Khomeini, que muitos acreditam ser o último dos grandes Imãs, um mesmo estatuto dado a S. Pedro.

No Irão, como em quase todos os países árabes onde há xiitas, com exceção do Iémen, o movimento Doze Irmãos, conjunto base da reverência, é maioritário. Outros, ismaelitas ou zaiditas são menores, secularizados até, no que se refere aos primeiros.

O mundo ocidental nega as novas realidades do Irão e a modernidade do islamismo xiita. A progressiva democratização da sociedade iraniana, a sua presença cada vez mais relevante nos equilíbrios geopolíticos de África e Ásia, funda-se numa afirmação do xiismo de boa vontade e de braços abertos. É por isso incompreensível a negação dos acordos sobre o “nuclear” que os EUA afirmaram. O Irão ganhou uma maturidade que importa conhecer e sabe hoje encontrar o convívio entre futuro e tradição, entre sociedade moderna e ensinamentos iniciais que sempre se podem promover numa nova presença para a harmonia.