Os efeitos de tal ambiente estão bem evidentes no nosso sistema de saúde que, numa corrida contra o tempo e com recursos humanos insuficientes, tem condenado pacientes ao isolamento mais indigno. Diz o povo que “o que não se vê, não se sente”, e a verdade é que as rígidas regras impostas nos últimos meses privaram familiares e amigos de conhecer com real clareza aquilo que se vive, dia após dia, entre as quatro paredes de um hospital.
O rápido avanço tecnológico no campo da medicina tem inebriado a confiança de profissionais e de pacientes, com os olhos postos numa esperança de invencibilidade técnica face às vulnerabilidades – ou “obsessão terapêutica”, como lhe chamava o Professor Daniel Serrão (1928-2017). Contudo, concentrar toda a atenção nos aspectos técnicos pode levar à desvalorização dos aspectos imateriais que tanto influenciam a saúde do paciente.
Pensar sobre os nossos cuidados de saúde exige coragem para fazer frente à politização das administrações e a alguns postulados ideológicos que tendem a inquinar o debate. Mas o debate sobre o sistema de saúde não se reduz apenas a questões de reestruturação material. É igualmente importante, num domínio algo imaterial, pensar em revalorizar a vocação humanista deste sector.
Claro que os dois domínios são inseparáveis e influenciam-se mutuamente. É impossível aspirar a um sistema que acompanhe integralmente as necessidades do indivíduo ao longo de todas as etapas da sua vida, quando sabemos que o actual sistema deixa milhares de cidadãos sem médico de família e sem o mais modesto contacto com prestadores privados. Ou, na mesma linha, é difícil ambicionar proximidade e compreensão psicológica e espiritual, sem pensar também em mudanças no plano material que promovam a soberania do utente, a responsabilização de todos os agentes e o incremento da qualidade do serviço.
Posto isto, foquemo-nos agora na importância do humanismo e das conexões humanas na saúde, pois têm sido gravemente desconsideradas nas opções governativas dos últimos meses.
Os portugueses já se acostumaram a aceitar um certo paternalismo no domínio da saúde, resignados à falta de alternativas num sistema sem competição: esperando anos por uma consulta decisiva, tolerando que existam privilégios para funcionários públicos no acesso a cuidados, e até, por exemplo, não ousando tecer comentários valorativos sobre os profissionais de saúde com que se cruzam. Mesmo assim, nada pode preparar um paciente e os seus familiares para a insensatez das restrições contraditórias e arbitrárias que têm sido decretas sob a justificação de combate à pandemia.
Em vez de abrir oportunidades para que os pacientes sejam devidamente acompanhados e confortados, através do envolvimento familiar, o nosso sistema impessoal contribui para reduzir o bem-estar e encurtar vidas, ao limitar o contacto com afecto e rostos familiares.
Uns conhecerão melhor do que outros a ingrata realidade em que visitas são negadas ao longo de semanas consecutivas, visitas são canceladas depois de agendadas, frustrando expectativas dos internados, os telefonemas não são atendidos e a comunicação entre profissionais de saúde e família fica tantas vezes adiada. Em tal situação, qualquer pessoa acabará por se sentir cobaia indefesa, pela terrível fatalidade de ficar refém de um internamento. E o que dizer de todos aqueles a quem foi negada a última despedida?
Perante condições tão adversas, talvez este seja um momento oportuno para entender que, na maioria dos casos, a redenção de muitas pessoas em sofrimento deve-se à acção meritória de quem dá o que tem e o que não tem, por dedicação e empatia, e não por mérito de alegadas boas intenções políticas. Intenções com carga ideológica que tratam os utentes com condescendência e distância, retirando-lhes poder de decisão e poder aquisitivo. Apesar de todas as disfuncionalidades, da insuficiência de meios, da politização do sector, da desmoralização dos profissionais de saúde e da aplicação de restrições absurdas, ainda vai sendo encontrado algum humanismo e bom senso graças a todos os que trabalham com sentido de compromisso.
Por tudo isto, importa favorecer um sistema que dê centralidade à relação entre médico e paciente, que considere os pacientes em toda a sua plenitude e que não os prive das relações humanas que lhes dão sentido e alento.
Nas palavras de Walter Osswald (“Uma Medicina para a nova década?”, 2010): “respeitar os direitos do doente implica igualmente proporcionar-lhe condições materiais e espirituais que tornem menos penosa a sua situação e que não acrescentem à doença o desconforto, a falta de privacidade, o isolamento, as privações. A humanização começa, obviamente, pela interiorização destas noções, pela assunção deste compromisso: o doente como razão de ser, justificação e honra da profissão de saúde, aquele a quem é devido respeito, solidariedade, compaixão, serviço de qualidade.”
A autora escreve de acordo com a antiga ortografia.