Um dos patrocinadores do último campeonato europeu de futebol surpreendeu-nos com caracteres chineses. Alipay parece ser a tradução desses caracteres, pois aparecia mesmo ao lado na imagem. Como não se investe sem expectativa de retorno, para a Alipay o benefício só pode residir na difusão da sua app como meio de pagamento. Será que é desta?
A Alipay é uma app que serve para realizar pagamentos com smartphones e é uma das mais bem-sucedidas no Oriente, já com mais de 1200 milhões de utilizadores. É também a mais antiga, com mais de 15 anos, a suportar o inexorável crescimento do comércio electrónico chinês. Além disso, é uma das estrelas da Ant Financial, o braço financeiro do grupo Alibaba. Sabendo que os sistemas de pagamento estrangeiros estão vedados na China, qual será a estratégia deste dragão chinês?
Estamos a falar do mundo dos pagamentos com smartphones, seja através de simples mensagens (SMS), seja com QRcodes, ambos muito fáceis para os utilizadores. Para os comerciantes em particular, com a Alipay, os pagamentos caem diretamente no POS (Point Of Sales), pelo que a finalização da venda e o fecho de caixa são mais rápidos e requerem menos trabalho do que estamos habituados por cá. É muito conveniente.
Os meios de pagamentos são um assunto muito sério, pois são a base de todo sistema financeiro. A partir do momento em que uma boa parte da massa monetária vive nos computadores dos bancos, os meios de pagamento desmaterializados suportam a transferência de valor que está na base do bom funcionamento dessa fatia das actividades económicas. Ainda por cima, os pagamentos desmaterializados prometem substituir a moeda física, cuja utilização ainda é significativa em alguns países. Em Portugal, por exemplo, e segundo o Banco de Portugal, cerca de 70% de todos os pagamentos ainda são realizados com recurso a notas e moedas.
A Alipay obteve uma licença para fornecer serviços de pagamento no espaço SEPA em 2018. Porém, isso não é suficiente para atacar o sistema financeiro, pois no nosso espaço económico é necessária uma licença bancária para suportar a reserva de valor desmaterializada. Assim, o máximo que a Alipay pode fazer é atacar o sistema de pagamentos, e isso não é fácil.
O uso dos cartões de débito ou crédito vulgarizou-se de tal forma por cá que todos os POS (leia-se, caixa registadora computorizada) estão preparados para a interligação com TPA (Terminais Automáticos de Pagamento), que são as máquinas capazes de espoletar as transferências entre as contas bancárias do comprador e do comerciante, e passar essa informação ao POS.
Colocar TPA alternativos aos comerciantes é possível, mas não é propriamente barato. Além disso, não haverá muitos comerciantes dispostos a ter muitos TPA diferentes só porque sim. A estratégia da Alipay tem de ser outra, e se alguma coisa caracteriza a China é a orientação ao longo prazo.
Na verdade, a Alipay está ligada directamente aos POS para oferecer uma alternativa à utilização dos TPA. Assim, ao processar um pagamento com QRcodes, a Alipay procede à transferência entre contas bancárias e cobra na mesma as taxas habituais. Para ter acesso a POS preparados para essa operação, a Alipay aliou-se à Worldline, que é um dos grandes a operar POS na Europa, tendo comprado em 2018 a suíça Six Payment Services e a francesa Ingenico no ano passado.
Com a Worldline, a Alipay funciona num mercado potencial de um milhão de comerciantes, quando hoje não chega a mais que uns poucos milhares na Europa. Aliás, a Alipay afirma querer chegar a todos os comerciantes europeus, na ordem dos 10 milhões. Será que está a preparar mais alianças?
A dependência da Alipay relativamente à Worldline mantém intacto o nosso sistema financeiro na sua essência, e esta jogada apenas vai fazer crescer a Worldline face aos seus concorrentes. Não obstante, não é caso para ficarmos descansados.
Primeiro, a Alipay é, na verdade, um tipo especial de app, chamada superapp, que é composta por uma constelação de mini-sites. Cada comerciante pode ter o seu, não só para receber pagamentos, mas para muitas outras funções habitualmente disponíveis em sites tradicionais. A Alipay começa, assim, por aliciar os comerciantes europeus com o mercado dos turistas chineses, pois esses consumidores já estão habituados aos mini-sites.
A partir do momento em que um comerciante aceita ser pago através da Alipay, tem um incentivo para ter o seu próprio mini-site. Com esse canal, a interacção com os seus consumidores passa a ser muito mais fácil, muito para além do simples pagamento. Esse mini-site é uma proposta de valor estratégica porque pode diferenciar o comerciante perante todos os seus consumidores, chineses ou não. Será por isso que a Alipay patrocinou o europeu de futebol, para que o seu nome comece a entrar na mente de todos os europeus, comerciantes e não só?
Será que estamos a correr o risco de ver a Alipay, e outras superapps, a conquistar o comércio electrónico offline na Europa? Estamos a falar dos comerciantes com loja física aberta, e é nisso que a experiência das superapps é insubstituível. Aliás, a Worldline também suporta outros meios de pagamento chineses como o Wechat e a Union Pay. Será que a conveniência do meio de pagamento é apenas um ‘cavalo de Troia’ utilizado pela Alipay para instalar a sua superapp na Europa?
Além disso, a Alipay pode ter outro objectivo estratégico. Estamos hoje a entrar claramente na era das criptomoedas, já com os bancos centrais mais importantes a emiti-las, ou a prometer a sua emissão para breve, como é o caso do Euro Digital. E se a utilização extremamente conveniente da Alipay se vulgarizar? O que a impedirá de bascular o uso dos seus QRcodes como representação de wallets criptográficas em vez da tradicional reserva de valor em contas bancárias ou parabancárias?
O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.