Assistimos nestas últimas semanas a um desfile especulatório e profundamente desonesto sobre as eleições francesas, em particular sobre a performance de Marine Le Pen e da sua FN. Quem estudou sistemas eleitorais e formas de governo sabe que uma eventual vitória de Le Pen é praticamente impossível no presidencialismo gaulês, e não é sério discorrer sobre tal eventualidade como se de uma probabilidade se tratasse. Quem não estudou sistemas eleitorais e formas de governo, devia pura e simplesmente abster-se de comentar, sobe pena de estar desonestamente a falar do que não sabe. O sistema francês é diferente do americano, e não se elege Le Pen com a facilidade que se elegeu Trump. O sistema francês, sempre a duas voltas, dado o elevado número tradicional de candidatos com peso eleitoral significativo, encerra a tradição do pacto implícito do regime conhecido na gíria como “rempart de la republique”, ou seja, a muralha dos republicanos, que consiste muito simplesmente na união dos diferentes candidatos do regime de modo a expurgar na segunda volta um candidato que não se enquadre nos parâmetros desse mesmo regime, independentemente de questões ideológicas.
Fillon foi o primeiro a dar o passo em frente e a dar o seu endosso a Macron. Melanchon terá de ganhar algum tempo antes da cambalhota, mas terá de endossar o candidato que não ameaça o regime. Benoît Hamon depois da humilhante derrota socialista, está obrigado a, pelo menos, manter o PSF dentro do sistema. Alain Juppé, com peso não negligenciável na direita, fez exactamente o mesmo.
Ainda assim, com realismo, pode equacionar-se uma subida de Le Pen. Haverá seguramente alguma direita que votou em Fillon e se pode agora sentir tentada a votar contra Macron, mas será seguramente um número residual de votantes, agora que a eleição é “a sério”. Não tenho a menor dúvida que dos votantes de Melanchon haverá uma parte que transitará para Le Pen, afinal a candidata mais próxima de Melanchon. Mas não podemos ignorar que, nesta segunda volta “a sério”, algum eleitorado de Le Pen, que votou em protesto “para assustar”, também desmobilizará. Não é preciso, portanto, muita ciência para descartar a possibilidade de uma victória do radicalismo de Le Pen.
Quer isto dizer que está tudo na mesma em França? De todo. A percentagem dos dois candidatos radicais, assumidamente anti-europeus e implicitamente em choque com o sistema de democracia que conhecemos, ronda os 40%. Os partidos tradicionais de regime quedam-se pelos 25 a 30%. O candidato vencedor da primeira volta apresenta-se como independente, pragmático, completamente fora da caixa em termos ideológicos.
Tudo isto se prepara há um tempo razoável, com sinais evidentes, resultantes dos paradoxos permanentes em que a sociedade francesa vive, mas sem uma resposta eficaz dos partidos tradicionais, enquanto interlocutores válidos dessa mesma sociedade. Os radicais Le Pen e Melanchon foram os únicos a saber apanhar uma parte dessa sociedade sem voz institucional. Macron constituiu-se como a saída de protesto sem ruptura, numa fórmula que provou ser vencedora.
A lição francesa deverá abrir os olhos às democracias ocidentais, como a lição holandesa já deveria ter feito. Com o sistema eleitoral inglês, um Corbyn ou um Farage podem fazer estragos que o sistema francês veda a Melanchon e Le Pen, vide resultado do Brexit. O descontentamento em relação à Merkel que detestamos, pode ter consequências que não imaginamos. A Europa não está a ruir, mas está claramente a abanar.
Conforme comecei por dizer, não acredito na vitória de Le Pen, mas acredito na urgência da Europa refletir seriamente nos motivos que levaram tantos franceses a votar em Le Pen e Melanchon, tantos holandeses a votarem em Geert Wilders, tantos britânicos a votarem em Farage ou Corbyn. Hoje ainda vamos a tempo, mas não sabemos por quanto tempo teremos tempo. Os gritos de aviso estão aí, ninguém se poderá queixar mais tarde de uma surpresa, não há surpresa, há só uma inquietante ausência de resposta de quem herdou o que os grandes Estadistas do século XX erigiram na Europa. Para variar, era bom dedicar uma parte deste 25 de abril a olhar para o futuro com a responsabilidade a que o passado nos obriga.