Ontem, num dos muitos combates ao tédio a que o isolamento social me tem forçado, deparei-me com um vídeo no Instagram a simular o que seria uma carta deste nosso novo companheiro do dia-a-dia, o coronavírus, à raça humana, o seu mais recente hóspede.

O vírus, mais simpático do que fazem crer nas notícias, agradeceu prontamente a oportunidade de transitar para outro mamífero, neste caso, o mais dominante do planeta, presente em todos os continentes e capaz de percorrer meio mundo em menos de 24 horas. Realmente, perante esta oportunidade, ficar só entre morcegos ou pangolins parece bastante limitativo.

Munido de uma racionalidade que parece ausente de muitos humanos, o vírus é rápido a mostrar um leque de acções repetidas da nossa espécie que, de uma forma ou outra, facilitam este tipo de situações, como a destruição progressiva de habitat de milhares de espécies ou padrões de consumo totalmente desadequados e insustentáveis. E, no fundo, o ponto principal do vídeo prende-se com esse mesmo: o abuso que ecossistemas por todo o planeta têm sofrido às nossas mãos.

Já o disse e, por acreditar genuinamente que é verdade, repito-o: uma das poucas coisas boas de uma crise é a oportunidade que representa para mudar comportamentos profundamente enraizados numa sociedade que, por um motivo ou outro, são indesejáveis.

Se há algum lado positivo desta crise sanitária e das restrições a que obrigou, é claramente a redução de emissões de carbono em tantos locais do planeta, que permitiu até que as cidades mais poluídas do mundo registassem valores aceitáveis de carbono no ar e tivessem uma linha do horizonte minimamente limpa pela primeira vez em demasiado tempo. Razão tinha o Governo quando disse que o coronavírus ainda podia ser bom – enganou-se foi no Ministério que devia ter falado, já que na agricultura as coisas não andam muito famosas.

As ideias de transição energética esbarram frequentemente no custo dessa transição, não só o financeiro, mas sobretudo o económico/social, com a resistência de cidadãos e empresas a uma mudança de hábitos cujos resultados são de médio/longo-prazo e para a sociedade como um todo e, portanto, com um efeito brutalmente diluído.

No entanto, parece-me seguro dizer que a suspensão alargada da actividade económica a um nível global é um ponto de ruptura suficientemente forte para tentar levar a cabo uma mudança radical de hábitos de consumo e esquemas de produção – que, aliás, está já a ocorrer de forma orgânica, com os consumidores a privilegiarem o digital e as empresas a estudarem o custo-benefício de cadeias de produção globalizadas vs. domésticas, por exemplo.

A necessidade que surgirá desta crise de estímulos em grande escala à economia, aliada com a urgência climática que vivemos e a mudança forçada de hábitos por questões de saúde pública são a oportunidade perfeita para a promoção real e comprometida de uma transição energética na Europa, a caminho de ser verdadeiramente um continente neutro em carbono.

A Comissão Europeia e a sua Presidente colocaram o foco na protecção ambiental – pois, promovam-na verdadeiramente, nesta altura em que uma grande parte da sociedade está sedenta de soluções para um futuro incerto.

O “Green Deal” seria um instrumento útil de estímulo às economias, permitindo investimentos públicos em infraestruturas de mobilidade sustentável (ciclovias, ferrovia) e privados em áreas chave como indústrias altamente tecnológicas, investigação ou uma agricultura moderna, sustentável, eficiente e saudável, uma área na qual Portugal, um país com inúmeros territórios de baixa densidade e um clima altamente favorável, pode e deve dinamizar-se.

Mário Centeno sugeriu um orçamento mais alargado e parece-me um apelo acertado – só não sei como será politicamente atingível, isto numa instituição que discute o Quadro Financeiro Plurianual para 2021-27 há três anos, com poucos compromissos alcançados até agora.

A urgência dos tempos que vivemos e se avizinham exige, de facto, criatividade e arrojo nas soluções. Temos de agir rápida e assertivamente, de forma coordenada, se queremos ultrapassar o maior desafio colectivo que já enfrentámos. E não, não falo da covid-19, mas sim da necessidade de proteger o ambiente. Aparentemente, tempestades bíblicas, incêndios dantescos ou icebergues a derreter não foram suficientes para nos fazer arrepiar caminho; pode ser que uma criatura microscópica o consiga.