A música é poderosa, a melodia contém muita emoção, é fácil de memorizar. Só por força da tradição o hino “America the Beautiful” terá sido escolhido para ser interpretado pelo coro Mormon na tomada de posse de Trump. A segunda estrofe é um louvor aos imigrantes e ao estado de direito:  “O beautiful for pilgrim feet/ Whose stern impassioned stress/ A thoroughfare of freedom beat (…) Thy liberty in law”. A composição começou por ser o hino religioso “Materna”, composto em 1882 pelo organista e dirigente de coro Samuel A. Ward. Tornou-se popular e, em 1893, recebeu a letra “America the Beautiful” escrita pela poetisa Katherine Lee Bates enquanto viajava de comboio pela América. Claro que a autora não se referia aos pés agrilhoados dos escravos, mas é apesar de tudo um hino à humanidade e às grandiosas paisagens americanas.

“America the Beautiful no more”, enquanto Trump e a sua corte de “yes men” fascistoides ocuparem o lugar mais poderoso do mundo. Steve Bannon declarou-se a si próprio como “leninista” porque quer destruir o Estado e apelou a uma “guerra santa”. Agora mandou a imprensa calar-se e passou a ter lugar no conselho de segurança de onde foram expulsos os chefes militares. Kuchner, o genro, especializou-se em super eficaz propaganda digital com mensagens feitas à medida das convicções dos eleitores. Outros há, como Paul Ryan, o líder republicano na Câmara dos Representantes, que são homens sem espinha.

Trump, filho de uma imigrante escocesa, proibiu a entrada de refugiados de sete países de maioria muçulmana. Segundo The New Yorker, Trump terá tomada a decisão sem consultar nem o ministério do Interior nem o ministério dos Negócios Estrangeiros. O ministro da Defesa, o general James Mattis, soube poucos minutos antes e, segundo a AP, terá ficado muito agastado – e fê-lo saber através de “fontes”. Talvez apenas duas pessoas soubessem. O New York Times, o jornal que Trump diz que devia ser vendido para ver se melhora, escreveu em editorial que a América caminha para um estado teocrático judaico-cristão – apesar do esquecimento das vítimas do Holocausto, cuja recordação ocorreu no dia da promulgação do decreto xenófobo.

A revista New Yorker repete que Trump é uma séria ameaça que já provocou gravíssimos danos à imagem dos EUA no mundo. Vários dos seus colunistas apelam à resistência, que aparentemente se está formar. A Procuradora-Geral foi ontem despedida por se recusar a pôr em prática a ordem de Trump. Juízes condenaram a decisão e a sociedade civil – desde logo advogados que correram para os aeroportos para defender os excluídos – reagiu com força à ordem de proibição e deportação de refugiados. Mas, 50% dos americanos ainda consideram positiva a presidência de Trump, apesar desta ser a mais baixa percentagem de apoio na história dos primeiros dias de um presidente. Ou seja, os que o elegeram continuam a pensar que Trump mantém intacta a sua sanidade mental.

É esclarecedora a análise feita em outubro de 2016 a partir de fontes públicas pelo médico e investigador canadiano Gabor Maté, especialista em dependência de drogas, stress e desenvolvimento infantil, à psique de Trump e Hillary Clinton. Maté encontra muitas semelhanças entre os dois e problemas com origem em infâncias muito duras. Maté escreve no seu blog que há consenso quase unânime sobre as questões psiquiátricas de Trump. Desordem de personalidade narcisista, segundo psicólogos citados na revista Vanity Fair. Outros diagnosticaram Trump como um caso severo de desordem de défice de atenção e, segundo, Tony Schwartz, o escritor sombra de “The Art of Deal”, Trump também sofre de mitomania: acredita nas suas próprias mentiras.

Maté acrescenta que aquilo que percebemos como sendo uma personalidade adulta, muitas vezes reflete compensações que uma criança desamparada adota sem intencionalidade de modo a sobreviver. Essas adaptações podem ficar a residir no cérebro e persistir na idade adulta. Trump manifesta trauma de infância, diz Maté. Aliás, Trump diz que não se lembra da infância e que prefere não se auto-analisar porque tem medo de não gostar do que poderá descobrir. Hillary Clinton também demonstra uma história de sofrimento precoce, diz Maté, mesmo que mais sustida, desde logo às mãos de uma mãe autoritária.

Em junho de 2016 escrevi no Económico que era mau para Portugal se Trump viesse a ser eleito, como tudo indicava, mas poucos acreditavam. Omnisciente foi o cineasta Michael Moore que, não só acertou na vitória de Trump como indicou, creio que também em junho, exatamente quais os estados onde iria ganhar e porquê. Na verdade, Moore analisou informação sobre as movimentações da campanha de Trump, a que a campanha de Hillary Clinton também teria acesso, mas à qual não deu importância – não fez sequer campanha nesses estados críticos.

Naquele junho, o herdeiro de negócios de construção civil e casinos já conseguira convencer, segundo as sondagens, cerca de metade do eleitorado dos EUA a elegê-lo Presidente em Novembro. Muitos acreditaram que se Trump chegasse a presidente “mudaria” para “normal”. Mas, como então alertei, ele mesmo garantia que não mudaria. E não mudou. Pelo que não entendo tanto espanto. Será ingenuidade ou apenas “wishfull thinking”? Ou outra coisa pior?

Como disse na segunda-feira em Londres Guy Verhofstadt, antigo primeiro-ministro belga e deputado europeu, depois da Rússia e do ISIL, a divisão e enfraquecimento da Europa é também objetivo declarado de Trump. Mantenhamos a esperança de que a metade “America the Beautiful” se reafirmará assim que o Estado de direito torne possível pôr termo à loucura antidemocrática e antiocidente de Trump e que a Europa se mantenha firme, unida e o mais bem armada possível.