Em 1970, quando Morrison gravou “An American prayer”, as questões americanas eram outras, eram dores de crescimento acelerado, eram o confronto do indivíduo com as visões de Toffler, Huxley, Carver e Ginsberg, todas diferentes e pertinentes em simultâneo. Era o homem na lua, a guerra fria e o Vietname. Era uma época de fascínio e paradoxos, mas um tempo onde, no meio disto tudo, cabia ainda a esperança.

Quando vi e ouvi o discurso de aceitação da nomeação de Joe Biden na convenção do Partido Democrata, senti que estes 25 minutos eram a nova “An American prayer”. No momento em que a América mais precisa de uma oração, foi Joe Biden quem a entregou à nação. Um rumo claro, um compromisso, um sentimento de pertença, a reconciliação urgente da América consigo mesma. Há muito das palavras de Francisco de Assis no discurso de Biden, onde houver escuridão, levaremos a luz, onde há desespero, levaremos a esperança, onde há ódio, levaremos a concórdia…

Sim, a América precisa desesperadamente de interiorizar e praticar esta oração. Quatro anos de tensão, belicismo verbal, ódio, divisionismo e confrontação, deixaram a América dilacerada, entregue a um caos de doença, desemprego e insegurança. Hoje, os americanos não identificam os seus inimigos no exterior, mas na sua rua, no bairro vizinho, no Estado com que fazem fronteira. Compram armas, como nunca antes, para se protegerem dos seus compatriotas, não de uma qualquer hipotética ameaça externa. Temem a diversidade que um dia os fez grandes.

Regressaram à tensão racial explosiva, depois de terem escolhido o primeiro Presidente negro da sua história. Vêem o exército, que sempre os protegeu dos perigos externos, a patrulhar as suas cidades, a disparar sobre americanos. Sentem medo, ansiedade, desconfiança, raiva, porque o pior de cada ser humano foi nestes quatro anos explorado sem escrúpulos, num divisionismo sem precedentes. O War Room de Bannon, muito bem retratado em “Homeland”, é a linha da frente desta guerra da América consigo mesma, o cumprimento dos sonhos de Putin, Xi e Kim, o trio que dribla e conduz Trump no colapso americano.

Joe Biden anunciou o regresso da América à sua razão de ser. Desafiou os americanos à reconciliação e unidade que sempre os fez fortes. Afirmou, com uma importância vital ao fim destes quatro anos, que não será o Presidente dos Democratas contra os Republicanos, mas de todos os americanos. Deixou bem claro o anúncio do regresso da América relevante à ordem mundial. Foi cristalino sobre os aliados preferenciais da nação. Foi taxativo quanto a princípios como a coesão, a justiça social, a igualdade de oportunidades e, acima de tudo, a democracia.

Numa síntese, o discurso marcadamente conservador de Biden, porque de regresso a uma tradição americana forte, fundou-se em três pilares impensáveis na Europa: Deus, pátria e família. Fugindo da opressão do politicamente correcto, o católico Biden deixou que Deus pairasse sobre todo o discurso, a fé foi invocada, o amor reiterado, a caridade desejada e a esperança assumida. A pátria foi recuperada em toda a sua essência e recolocada no devido sítio, como ponto de união, de orgulho comum, de partilha sem exclusões. A família foi reposta no centro de tudo, como raiz e tronco, lembrando a importância das diferentes gerações que a compõem, o exemplo do pai, o apoio da mulher e o orgulho nos filhos. Um homem sem medo de ser quem é, uma vida como a de tantas outras pessoas normais.

Há dias, Jacob Blake foi covardemente atingido pelas costas quando se dirigia para o carro onde o esperavam os seus dois filhos, duas crianças de cinco e oito anos. Jacob Blake é negro e foi alvejado pela polícia sem que nenhuma prática prescrita o justificasse. Depois de lutar pela sobrevivência, ficará para sempre paralisado.

Blake prova que o mártir Floyd não foi uma caso isolado, mas um padrão que se repete aceleradamente na nova América de Trump. Em Kenosha, a cidade onde tudo se passou, as ruas estão em convulsão, a revolta é incontrolável e milícias fortemente armadas de supremacistas brancos são detetadas. As tais milícias do terror, onde Trump acha que há “very fine people”.

A América e o mundo, em particular a Europa, precisam desesperadamente do regresso à normalidade, a uma ordem mundial estável e previsível, à clara destrinça entre democratas e ditadores, entre quem defende os valores da nossa civilização e quem os ameaça. Joe Biden é a esperança deste regresso à decência e à credibilidade, tornou-se um sinal de esperança com o seu discurso e a convicção que pôs em cada palavra. “An American prayer” para estes tempos terríveis.